Vitória da Conquista, 4 de novembro de 2042
Se ainda não vos enfadastes com a leitura destas cartinhas, contar-vos-ei mais algumas estórias. Desta vez, aquelas que fizeram a história da Ponte.
É possível identificar três períodos distintos de evolução do projeto. O primeiro decorre entre 1976 e 1986, ano da publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo. Foi tempo de resistir, tempo de preparar outros tempos.
Dizia-se que a ditadura acabara e que já vivíamos em democracia. Porém, as reações da administração educacional caracterizavam-se pelo autoritarismo. Nesse tempo e até meados da década de vinte, as palavras “autonomia”, “participação”, “democraticidade”, eram apenas palavras usurpadas por académicos ociosos e usadas para fins mercantis.
Creio já vos ter dito que, em meados da década de setenta, quase abandonei a profissão de professor. Atravessava uma segunda crise profissional, uma crise ética, solucionada pelo trabalho em equipe. A Ponte me salvou, porque me ajudou a abandonar… a sala de aula.
Até meados dos anos oitenta, a equipe era constituída por mim e por alguns elementos da Associação de Pais. Se não havia professores disponíveis para o serem, valeram-me os pais dos alunos. Com eles, iniciei projetos: a despoluição dos rios, a erradicação das lixeiras, a colónia de férias… e um novo prédio, para uma nova escola.
O novo edifício, ocupado em 1984, permitia o desenvolvimento de uma pedagogia orientada para uma praxis social de integração do meio na escola e da escola na vida, aliando o saber ao saber fazer, em trabalho e a saberes populares.
Nela não havia salas de aula. E qualquer espaço de aprendizagem poderia, no princípio de um dia, acolher o trabalho de um grupo; poderia servir de espaço de expressão dramática, a meio da manhã; poderia receber, no fim do dia, as crianças que desejassem participar numa roda de conversa.
Num mesmo dia, o polivalente poderia transformar-se num refeitório, ser lugar de realização de uma assembleia, de expressão dramática, ou de educação físico-motora. A distribuição das crianças por espaços específicos apenas acontecia em situação de iniciação e de transição. Em breve, vos explicarei em pormenor.
As crianças da “iniciação” dispunham de um espaço próprio, onde aprendiam a ler e a entender o que liam, onde criavam e a aprendiam a ser gente. Não permaneciam sempre nesse espaço, partilhavam-no colegas de outros núcleos.
Essas e outras transgressões “metodológicas” foram reprimidas pela administração, enquanto despertavam curiosidade em muitos educadores.
A novidade correu mundo, fez-me viajar e confirmar que fôramos os primeiros a operar, radicalmente, a rutura com práticas do paradigma da instrução.
Nos tempos que correm, raramente encontramos nas escolas o velho hábito de trabalhar com uma turma, dentro de quatro paredes. Mas, ainda hoje, há escolas de rutura parcial, como as montessorianas e os seus materiais, ou as waldorfianas e a sua euritmia, mas onde ainda se trabalha em sala de aula.
O exotismo do projeto transformara a Ponte num objeto de turismo educacional. Gente dos quatro cantos do mundo ali chegava para ver, claramente visto, o aluno no centro do processo de aprendizagem. Quando uma visitante entrou num dos espaços de aprendizagem, comentou:
“A sua escola é diferente das outras. Não é uma escola normal.”
“E o que é normal?”
“Esta escola não tem salas de aula, por exemplo. Na minha escola, cada professor trabalha na sua sala de aula. Por que não tendes salas de aula?”
“Por que deveríamos ter?
“Não sei… acho normal.”
Por que as tendes?” – perguntei.
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