Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXCI)

Tanguá, 21 de dezembro de 2042

Dizem as enciclopédias que um solstício é um evento astronômico em que um dos polos da Terra se encontra no seu ponto máximo de inclinação em direção ao Sol. Se o Polo Sul estivesse mais voltado para o Sol, acontecia o solstício de verão no Hemisfério Sul.

Enquanto o Brasil recebia os raios solares com máxima intensidade, Portugal tremia de frio, no início do solstício de Inverno. Eu saboreava o calorzinho tropical, esperando o equinócio seguinte, para visitar amigos e parentes no norte primaveril.

Mais ou menos há uns vinte anos, numa das minhas idas a Portugal, duas situações me mostraram como a vida é breve.

Foi no tempo da Covid. Após catorze dias de reclusão (a que chamavam “quarentena”) saí de casa decidido a caminhar quilómetros. Ao ímpeto inicial as pernas responderam com vontade de pausar.

Sentei-me num banco de jardim, arfando. Subitamente, me apercebi de que a última vez que me sentara naquele mesmo banco fora há… cinquenta anos. A Alice, para quem o avô escrevera outras cartinhas, nascera em 2001, ano do início da minha segunda vida (a brasileira) e já estava fazendo mestrado de Psicologia.

Já aqui vos falei da tese da Cláudia, que assim descrevia as suas primeiras impressões na chegada à Ponte:

“Muitas coisas chamam a nossa atenção ao chegarmos na Ponte. Para mim, o primeiro impacto foi o “portão da rua”. Cheguei na escola no horário de aula, e o portão de acesso à escola estava completamente aberto. Achei que alguém tinha esquecido de fechar ou até mesmo de trancar.

Lembrei das escolas que trabalhei e convivi no Brasil, o portão sempre estava trancado, de preferência com cadeado, deixá-lo aberto era uma falta grave.”

A Cláudia surpreendeu-se com a atitude de “abertura” da escola, simbolizada num portão aberto. Porém, a interface escola-meio social nem existia nessa autônoma construção social de aprendizagem, porque essa escola era um nodo de uma comunidade.

Na mesma viagem ao Norte, visitei uma Escola da Ponte degredada, no outro lado do rio, para onde o autoritarismo de um ministério (e a deslealdade de alguns professores) a tinham atirado. À entrada, uma desagradável surpresa: o funcionário da portaria – a Ponte voltara a ter “porteiro”! – colocou a sua mão no meu peito e mandou-me parar. Perguntou-me ao que eu ia e quem eu era.

Embora pacifista nato, a minha vontade foi dar-lhe um murro, mas o “porteiro” não era responsável pela minha súbita e justificada irritação. Amavelmente, retirei a sua mão do meu peito e disse-lhe que iria visitar a escola.

O “porteiro” terá percebido que eu não iria pedir-lhe permissão para entrar e apenas perguntou quem eu era.

Já entrando “sem autorização”, disse-lhe o meu nome. Vi que o “porteiro” pegou no telefone, para avisar da chegada do intruso.

Adentrei uma porta (fechada) e logo uma criança dos seus três ou quatro anitos se me dirigiu nestes termos:

“O senhor quer ver a nossa escola, quer? Eu posso mostrar.”

Felizmente, ainda se mantinham rituais, hábitos, rotinas criadas há meio século. Como o de dizer “nossa”, no lugar de “minha”, e de serem as crianças a mostrar a sua escola.

Quando lhe dava um beijo e lhe dizia já conhecer a escola, eis que surge a “Dona Helena”, exclamando:

“O Professor Zé por aqui? Fico tão feliz por vê-lo!” – e, dirigindo-se à criança, perguntou:

“Não sabes que é este senhor? É o Professor Zé.”

“Ah!” – respondeu o pequeno – “Já sei! Foi o professor do meu avô.”

Como diria o poeta, “a vida é sonho tão leve…”

A Dona Helena tinha muitas estórias para contar. Publicou-as num belo livro, que eu li, no abril de há vinte anos, quando voltei à Ponte.

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