Macaé, 14 de janeiro de 2043
Há pouco mais de cinquenta anos, mantive uma grande amizade com um eminente sociólogo, que um câncer, prematuramente, levou do mundo dos vivos. Enquanto um resto de saúde lhe permitiu partilhar com este seu aprendiz, o arquivo das teses que tinha orientado, eu aproveitava todos os momentos livres de canseiras para as ler. Até que, lendo uma tese sobre o flagelo da fome, dei comigo a rir do conteúdo.
O meu amigo perguntou por que eu ria. Respondi que aquela tese era mentira. Que o seu autor nunca fizera observação participante.
“Por que dizes isso?” – perguntou.
“Eu sei da tua competência. Talvez a tua confiança no doutorando te terá traído. Esta tese não passa de um exercício de citações do Josué e de outros teóricos, não passa de teorização de teorias. Esse doutor não sabe o que é a fome, nem qual a sua origem.”
“Não estou a entender”.
“Querido amigo, no tempo em que o doutorando elaborou a sua tese, na “Ilha dos Tigres”, nesse território, que deveria ser o locus de pesquisa, não entrava polícia, nem ambulância, quanto mais um pesquisador! Se ousasse entrar, poderia sair… na horizontal”.
Ao meu amigo, pareceu que eu estava a exagerar. Perguntou:
“Como sabes que o doutorando não poderia entrar?”
“Porque eu nasci e vivi nesse cortiço. Sei o que é a “Ilha dos Tigres”.”
O meu amigo conhecera o vosso avô nos bancos da universidade. Não lhe passava pela cabeça que eu tivesse sido criança e jovem morador num cortiço. Naquele tempo, um favelado nunca chegaria à universidade. Quanto muito, faria um curso técnico-profissional, um daqueles que eu também fiz, antes de decidir ser professor: o curso de montador eletricista.
O dinheiro que ganhei fazendo instalações de baixa tensão e dando “explicações” a jovens que a escola não conseguia ensinar, me permitiu continuar estudos.
Quando já era professor há quase meio século, pela milésima vez, me perguntaram:
“Por que é que você é contra a aula?”
“Não sou contra nada. Sou a favor de tudo o que seja útil, que ajude a aprender. Aula sempre haverá, enquanto houver aprendizes. Quando o discípulo está pronto, eis que surge o mestre, e a aula acontece. Mas, não em sala de aula.”
“Por que não?”
“Porque quase nada se aprende, ouvindo aula. E porque o instrucionismo perdeu sentido, fundamentação. “
“E o método que você usa tem fundamento?”
“Não é um método. É uma nova construção social de aprendizagem.”
“E qual é a fundamentação disso?”
Dei-lhe uma longa lista de autores. Perguntou:
“E o que é que eles dizem nos livros?”
“Vá lê-los e ficará a saber.”
Leu. Produziu power point. Vendeu formação. E continuou dando aula… em sala de aula.
O caminho para a mudança e inovação estava entupido de teoricistas e PhD made in USA, que liam tratados, colavam na memória as mesmas lenga-lengas dos seus professores e as recitavam. Denunciavam a mercantilização da escola pública e a barbárie instituída, enquanto as suas práticas contribuíam para a perenização de um modelo educacional que reproduzia a barbárie.
Essa praga se prolongou até meados dos anos trinta. Depois, ingloriamente, sumiu. As suas “produções” tiveram o destino que mereciam: o balde do lixo da História da Educação.
Tinha sido grande o dano causado pelos dadores de aula, que enriqueciam à custa da curiosidade de professores famintos de novidades. Ascendiam a lugares de “prestígio” na cadeia hierárquica. Vendiam livros compostos de inúteis citações de citações. Palestravam e assessoravam, enquanto a educação se degradava e a escola fenecia.
Netos queridos, eu sei que custa a crer, mas era essa a triste situação, nos idos de vinte.
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