Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXX)

Sobral, 19 de janeiro de 2043

Netos queridos, abristes uma ferida, há muito, curada. E lá voltamos nós àquelas cartinhas que eu desejaria não escrever. Até porque aludem a pecados velhos, há já muito tempo, redimidos.

No início da década de vinte, intervim numa “live” em que participou a secretaria de educação de Sobral. O encontro decorreu num ambiente de saudável cooperação. Falamos da Ponte e do Projeto Âncora. Reconheceram a excelente qualidade desses projetos. Por isso, no final do encontro virtual, manifestei disponibilidade para manter colaboração gratuita, contribuindo para melhorar a educação que em Sobral se fazia.

Esperaria, no mínimo, uma resposta. Mas ela nunca chegou. Por essa altura, a suspensão do diálogo era apanágio de pedagogos colonizados. Já havia sentido algo semelhante, durante uma reunião num grande colégio de um país da América do Sul.

Pediram-me “consultoria”, um “parecer” sobre uma proposta de contrato. Tratava-se de avaliar um projeto dito “inovador”. Solicitei a sua base teórica. Li-a, analisei-a e cheguei à conclusão de que não possuía qualquer consistência. A metodologia era requentada e havia semelhança com paliativos neoliberais de que vos falei em outra cartinha.

Propus que não se fizesse a compra. Mas houve quem comprasse mais um fake project made in USA. Nessa altura, o processo de mercantilização da escola pública já era exponencial.

Já entendestes por que o Mestre Agostinho não tinha CPF (boletim de contribuinte)? Se o tivesse, os ministérios teriam de lhe “explicar” onde era gasto o dinheiro dos impostos. E, certamente, os ministérios não saberiam explicar o desperdício.

O erário público era saqueado por “modismos pedagógicos”. Empresas, fundações e outras agências financiavam o “aventureirismo pedagógico” e recusavam apoiar projetos efetivamente inovadores. Alegavam “resultados”, publicavam rankings, apelavam à competição negativa, à meritocracia. E, quando essa raposa conseguiu entrar no capoeiro, ficamos em vias de desperdiçar mais quatro anos “apostando em cavalo errado” (metáforas sem ofensa para os animais).

Sobral se gabava de ter atingido o nível 9 do IDEB (índice de decoreba da educação básica). O Projeto Âncora fora muito além de Sobral, atingindo o nível 10 do IDEB (não o índice de “decoreba” de Sobral, mas o de “desenvolvimento”).

A corrupção moral, intelectual e econômica destruiu esse projeto.

Ele tinha por referência a Ponte, uma escola pública que obtivera os, primeiros prémios dos concursos de projetos inovadores, influenciando milhares de professores, escolas e municípios de vários países.

Também muito além de Sobral foi a sua contemporânea Escola Aberta e centenas de outras escolas espalhadas pelo Brasil. Por que razão Sobral fora escolhido?

Talvez porque o que por lá acontecia não perturbasse o status quo. Talvez porque uma opinião pública acrítica conferia credibilidade a rankings e índices falíveis. Talvez porque beneficiasse da injeção de generosos financiamentos. Talvez porque partira da iniciativa política de gente bem-intencionada, mas que da educação necessária nada entendia. Talvez porque um marketing perfeito alindara o produto e suscitara a procura.

Vai para uns vinte anos, o Senhor Ministro dissera ser necessário “um grande pacto colaborativo para a Educação”. Cadê o pacto, se ele mesmo havia transformado Sobral na única referência de qualidade e “farol” de uma nova educação? Por que não aceitava dialogar? Por que razão o ministério não se abria a um debate fundamentado em critérios de natureza científica?

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