Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXII)

São José, 21 de janeiro de 2043

Perguntareis pelo porquê desta cartinha e vos digo que tem muitos porquês. Ela inaugura uma sequência de cartinhas, nas quais tentarei fazer-vos chegar uma imagem aproximada de pelejas educacionais, de êxitos e fracassos, de assomos de Vida e de iníquas vitórias da Morte. Como a da Mãe Luíza, que faleceu nos meus braços, faz hoje, exatamente, sessenta e oito anos.

Netos queridos, recomendo-vos a leitura integral dos poemas, que vos deixo, pois a transcendência possível sempre foi alcançada pelo caminho da poesia e da música. Como diria Sebastião da Gama: “Pelo sonho é que vamos”

Foram muitos os dias como o de hoje, em que lembrei versos do Chico:

“Tem certos dias em que eu penso em minha gente / E sinto assim todo o meu peito se apertar / E aí me dá uma tristeza no meu peito / Feito um despeito de eu não ter como lutar / E eu que não creio, peço a Deus por minha gente / É gente humilde, que vontade de chorar.”

Não eram dias de lamentar, mas de chorar por dentro, por não conseguir extinguir a mentira, que o Ivan cantava:

“Entrei num lugar estranho, que eles chamam de cidade / Com tanta mentira solta que assustou minha verdade / Vieram com uma baboseira, e uma tal prosa fiada / De bobo não tenho nada, não foi ontem que nasci.”

Dias de sentir vergonha de não ter ido mais além na denúncia cantada pelo Leonard: 

“Sail on, sail on / O mighty ship of state! / To the shores of need, past the reefs of greed / Through the squalls of hate.”

Nesses dias de não viver, me culpava pelo desprezo a que Cartola fora votado:

”Se eu pudesse gritaria / É necessária a nova abolição / Para trazer de volta a minha liberdade.”

E relia o poema-manifesto de Régio, que a Bethânia, apesar de lhe subtrair versos, magistralmente, declamava:

“Vem por aqui” / Dizem-me alguns com os olhos doces / Eu olho-os com olhos lassos / (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) / E cruzo os braços / E nunca vou por ali / Corre nas vossas veias / sangue velho dos avós / E vós amais o que é fácil! / Ide! Tendes estradas / Tendes pátria, tendes tetos / E tendes regras e tratados / Ninguém me diga: “vem por aqui”! / Não sei por onde vou / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!”

Por aqui me quedo, nesta “colagem” de textos, pedaços da alma de poetas e cantores dos quatro cantos do mundo. textos que guardei numa espécie de “portfólio”, que sempre me acompanhou num quixotesco caminhar. Nele guardei memória de tudo o que havia de significativo na minha vida anterior à andarilhagem. 

Guardei o livro de poemas do Brell, que a professora de francês (que eu amei e me amou) me oferecera, nos idos de sessenta. Num envelope, a camisa branca, que me vestiram no dia em que nasci (por setenta anos a conservei). Colei numa cartolina amarelecida recortes de jornal com notícias de xadrezisticas vitórias e boletins escolares (com boas notas) que, orgulhoso, o vosso bisavô a todo o mundo mostrara. Juntei o cheque de pagamento do meu primeiro trabalho, a última carta recebida da Mãe Luíza, reportagens da Revoluçao dos Cravos… toda uma Vida reunida em minguado espaço.

Na Ponte, durante décadas, fui o único professor homem e agradeço às minhas companheiras de projeto terem-me ensinado a ver o meu lado feminino. Com elas, reaprendi a chorar – o meu pai me proibira de chorar por fora. 

Por décadas, o “portfólio” de memórias me acompanhou. Até que, certo dia, desapareceu. Nesse dia, chorei por dentro lágrimas de compaixão por quem cometeu tamanha maldade.

Entendi o desaparecimento como sinal de que também eu deveria desaparecer, dar lugar a quem soubesse corrigir os meus erros.  

Apelei ao dom do desapego. Saí de cena. Fui viver.

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