Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXVIII)

Amajari, 27 de janeiro de 2043

Nos idos de sessenta e de setenta, era raro o mês em que um meirinho do ministério não me visitasse para me ameaçar. Na Ponte, o assédio moral só terminou, quando decidimos desobedecer, em absoluto, às imposições. Nos idos de setenta, quando nos assumimos na dignidade de professores autônomos, responsáveis e solidários – a matriz axiológica do projeto – a Ponte transformou-se num “campo de batalha”.

“Vai ter de voltar para a sala de aula!” 

Aos berros, visivelmente fora de si, o senhor inspetor ordenava que deixássemos de trabalhar em equipe, em múltiplos espaços de aprendizagem, e voltássemos a estar sozinhos em sala de aula.

Se o inspetor manifestava tiques autoritários, eu pagava com a mesma moeda.

“Você tem que dar aula! como toda a gente!”

“Nem dada, nem vendida! Era só o que faltava!”

Se ele não invocasse “superioridade hierárquica”, eu passava a ser razoável e agia com compaixão. Até cheguei a servir-lhes um cafezinho. E um deles até foi conversar comigo na minha casa. Ficamos amigos.

Se ele se acalmasse, respeitosamente, eu voltava aos porquês. Pedia que ele fundamentasse a sua atitude na lei e na ciência.

“Por que devo voltar para a sala de aula?”

E lá voltava a liderança tóxica:

“Porque eu mando!”

“Porquê?” – voltava a perguntar. E perguntava, perguntava, perguntava, até ao berro seguinte do senhor inspetor. 

Se ele caísse na asneira de dizer “eu acho que”, respeitosamente, lhe dizia que o “achismo” não era para ali chamado. 

O litígio desembocou em ameaça de processos disciplinares, quando eliminamos obsolescências como: “carga horária”, “ano letivo”, os “50 minutos da aula”, “intervalos”, “horário de entrada e de saída”, “trimestre” etc. 

E o diálogo de surdos recomeçava. Foram muitas as perguntas formuladas, ao longo dos últimos setenta anos. Aqui vos deixo algumas. Nenhuma obteve resposta. 

Por que havia sala de aula?

Por que se dava aula em outras escolas?

O que era um ano letivo? Por que havia ano letivo? Se estava na lei, por que estava na lei?

Por que havia duzentos os dias letivos, se não era isso que estava escrito na lei e se aprendíamos nos 365 dias de cada ano? 

Por que eram ensinados conteúdos por bimestre, por trimestre… Para qual aluno?

Por que razão uma aula durava 50 minutos? 

Por que se instituía “um horário semanal de educação para a cidadania”? Não deveriam ser as restantes horas de “educação na cidadania”?

Por que razão todas as escolas começavam a funcionar no mesmo horário? 

Por que razão se mantinha a separação entre educação familiar, educação social e educação escolar? Por que não fazer um re-ligare essencial? 

Por que razão se segmentava a educação escolar em “jardim infantil / educação de infância”, “fundamental um / primeiro ciclo”, “ensino médio / ensino secundário”, por que se separava o ensino “superior” de um suposto ensino “inferior”? 

Por que seria que crianças de tenra idade não paravam de fazer perguntas e, quando chegavam a adultos, já não sabiam perguntar?

Por que razão as crianças que “não acompanhavam o ritmo da aula” (sinistra expressão) eram condenadas ao insucesso escolar e educativo? O que era o “ritmo da aula”?

Por que razão os banheiros dos alunos estavam separados dos banheiros dos professores?

Por que havia professores que aceitavam que uma parcela significativa dos seus alunos, “naturalmente”, não aprendesse?

Preparai-vos para receber mais perguntas. Só no início da década de vinte, algumas começaram a ser respondidas. Deixo-vos com uma, formulada no janeiro de há vinte anos:

Quem educou os bonsais humanos que tentaram exterminar os yanomami?

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