Porto Acre, 28 de janeiro de 2043
Numa conversa de boteco, animado por etílicos efeitos, o amigo Abel confessou incômodos.
“Sabes, Zé, eu até te entendo. Tu não estás em sala de aula, mas, o que é que queres que eu faça? Obrigam-nos!
Quando eu cumpro planos de aula, que fiz dias antes, não sinto que seja eu quem está a dar aula. Sinto-me um autêntico “clown”, alguém que está a representar um papel, a cumprir um guião que alguém me encomendou.
Eu não estou lá! E sinto que os meus alunos não aprendem. E isso me incomoda. Isso é o pior de tudo.”
Quando bebia uns copitos a mais, o Abel era de uma franqueza sem limite, cruel. E as suas palavras traduziam o sentir de milhares de docentes, que não ousavam dizê-las. Cativos do instrucionismo, agiam sem explicação. E sofriam a contradição entre o amor que sentiam pelos seus alunos e a incoerência dos seus atos.
Na escola dos idos de vinte, quase ninguém sabia por que fazia aquilo que fazia. Em 2043, poderá parecer-vos estranho que houvesse seres humanos que, bovinamente, aceitassem cumprir rituais sem sentido, mas era essa a triste realidade. Enfim! Disse-vos que haveria mais um rol de perguntas jamais respondidas e aqui estão elas.
Seria possível conciliar a ideia de uma educação de boa qualidade com abstrações como “turma homogénea”, com a divisão dos alunos por turmas e a segmentação em anos de escolaridade (por vezes, disfarçados de ciclos)?
Onde encontraríamos indicadores seguros da consecução de uma aprendizagem significativa, integradora, ativa, socializadora e diversificada?
Seria possível conciliar a ideia de uma educação de boa qualidade com a utilização de livros didáticos iguais para todos os alunos e com aulas dirigidas a um hipotético “aluno médio” sem atender a diferentes “ritmos” ou estilos de inteligência, com uma gestão rígida de tempos e espaços educativos e o trabalho do professor isolado física e psicologicamente na sua sala de aula?
Quando teríamos nas escolas uma avaliação alinhada com a aprendizagem, verdadeiramente formativa, contínua e sistemática, na qual os objetivos de ordem atitudinal assumissem maior relevo?
Por que se desperdiçava precioso tempo no adestramento dos alunos em treinamento de provas, em obsoletos rituais de classificação (confundida com avaliação), se não existia nas escolas uma cultura de avaliação que permitisse obter indicadores seguros de aprendizagem?
Por que perdiam os professores tanto tempo a aplicar e a corrigir provas, exames e outros testes, que nada provavam?
O que era um “dígrafo”, ou expressões do tipo “sujeito nulo subentendido”? O que eram “plantas epífitas”, ou em que consistia um “ato ilocutório diretivo? Por que razão um aluno do ensino fundamental deveria “aprender” o que era o eugenol?
Por que havia férias escolares e recessos? Uma igreja brasileira entrava de férias em dezembro, para reabrir ao culto depois do Carnaval? Na escola portuguesa, a inteligência deixava de funcionar em junho, para voltar a funcionar em setembro?
Por que razão todos os alunos teriam de urinar e defecar ao mesmo tempo?
Por que existia “carga horária”, se carga era coisa de jegue, não era coisa de gente?
Por que havia toques de campainha e gritos de sirene?
Aconteceria aprendizagem, quando não eram constituídos vínculos afetivos, emocionais, estéticos, éticos? Se tivemos um professor de quem não gostamos, por que nada aprendemos nessa disciplina?
Por que se considerava que uma escola era um prédio?
Continuamos sem escutar respostas, até aos anos trinta, quando toda a tralha instrucionista foi removida para o museu da pedagogia.
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