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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCII)

Maricá, 1 de janeiro de 2043

Netos queridos,

Eis-nos chegados ao ano da graça de 2043! Como sempre faço, no início de cada ano, tentei (sem sucesso) libertar-me de velharias acumuladas. No fundo do baú das velharias, achei o cartão que encima esta cartinha.

O Mauro e a Valéria eram (e são) dois amigos, que dedicaram toda uma vida à causa das crianças. Tal como o amigo Matias, autor de um textinho em que citava outro bom amigo, o Miguel, que, num dos livros que eu levaria para uma ilha deserta (“No coração da escola”), dizia ser a escola uma instituição em que apenas se pergunta às pessoas: “o que sabes?” E muito poucas vezes: “o que sente?”

O vosso avô viajava, não tinha eira nem beira material, mas tinha muitos amigos, uma vida feita de amigos. Como o Rui Canário, que, no seu livro ” O que é a escola”, defendia que o problema dos professores e o problema dos alunos era o mesmo problema, convidando a uma relação de aliança e não de confronto.

“Pode ser o início de uma metamorfose nos modos de pensar e de agir na profissão? Pode ser o início de uma política de emancipação e libertação? O que sentes, tu, professor, quando ninguém se importa com as tuas dúvidas, com as tuas dores físicas ou sentimentais, quando tens de dizer bom dia vamos então lá a lição número 55, o sumário é os sistemas lineares em ambientes caóticos, e quase ninguém escreve, quase ninguém liga, fala para o lado e para trás e a tua alma sangra e no teu peito bate um coração aflito, quase desesperado e exangue, quando tens de mesmo quando te apetece chorar, quando tens de encarcerar todos os teus sentimentos e apenas te permites que seja a máquina pensante, a máquina que ensina, a máquina.

O que sentes, tu, aluno, quando o professor faz o ditado da matéria e tu nada entendes, quando és humilhado de mil e uma formas, quando tens uma nota que não corresponde aos teus saberes, quando a tua princesa encantada voou dos teus olhos e foi morar para longe de ti, ou quando o amor lateja intensamente e tem de ficar preso numa impossibilidade, quando o professor tem de dar o programa todo e tu te ficas apenas pela metade.

Em nome dos exames, do acesso ao ensino superior, da meritocracia, da justiça e da igualdade de oportunidades, da igualdade de frequência, da igualdade de sucesso. E da inclusão.

Triste é este mundo dos sistemas, triste é esta máquina do sistema, triste é esta vida desumana, triste é esta separação, esta alienação. Esta desesperança. Resta-nos pensar, agitar, acordar. Agir e interagir para construirmos outros pequenos mundos. Habitáveis. Humanos.

Precisamos de construir uma “arca de aliança” entre professores e alunos. Entre

professores, alunos e pais. Uma aliança inscrita no território onde os professores

podem ter uma voz poderosa e reconhecida. Porque é aí que o reconhecimento e autoridade pode ser retomados. E onde uma nova “política” pode emergir. Procurar para sair do labirinto onde todos nos perdemos.”

No primeiro de janeiro de há vinte anos, enviei aos meus amigos votos de feliz ano novo. Em particular, àqueles que, no WhatsApp da UNIPROSA e da “Cátedra Grupo Acadêmico,” pugnavam por uma “nova política”. Com eles e esperançosamente, aguardava as iniciativas de uma “nova política” do governo que, nesse dia, passaria a dirigir os destinos do país.

Mais uma vez, lhes perguntei:

“Vamos conversar?”

E lhes pedi que, após tempos sombrios, agissem no sentido da criação da “arca de aliança” entre professores e alunos”, que o amigo Rui Canário propunha.

Esperava que, desta vez, não ignorassem o meu convite. Afinal, as passagens de ano seriam, ou não seriam, oportunidades de regeneração?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCI)

Maricá, 31 de dezembro de 2042

Netos queridos, no início deste século, o vosso avô fez um livrinho com o título “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos”, que a Janaína transformou numa bela peça de teatro. Decidi escrever esse livrinho numa noite de passagem de ano, quando tu, querido Marcos, sentado no colo do teu pai, viravas páginas de livros, como quem lia. Deste modo descrevi a tua “leitura”:

“Melhor dizendo, o Marcos lia. E balbuciava uns sons só aparentemente desconexos. Eu, que estou longe de ser um entendido na palavra pura, que ainda confundo uma arenga babélica com a fala transparente, não conseguia traduzir o seu balbuciar. Este avô, ainda que empenhado no desaprender do palavrear adulto, deturpa o verbo virginal, confundindo-o com o linguarejar de adultos tagarelas.”

Na noite de “Ano Novo”, a casa estava cheia de gente e de altos sons. Lá fora, o termómetro marcava zero graus. Dentro de casa, o calor humano juntava-se ao calor provindo da lareira, na espera dos últimos dez segundos do ano. A tradição mandava que, em cada momento da contagem decrescente, os adultos comessem uma uva passa, formulando desejos, e objetivos para o ano seguinte.

“Subitamente, o meu neto suspendeu a leitura e fixou o olhar num ponto qualquer, como quem deparara com o Aleph. Fiquei a observá-lo, discretamente, para não interromper a absorvente contemplação. Segui a direção do seu olhar. Fixava-se num dos gestos rituais de passagem de ano, protagonizado por um tio que engolia uvas passas com um semblante demasiado concentrado para quem apenas estava ingerindo alimento.”

Quando os adultos ingeriram a primeira uva passa, fez-se um súbito silêncio. E, não te recordarás, certamente, mas te sobressaltaste. Suspendeste a leitura e passaste à contemplação da cena. Vendo aquele ritual pela primeira vez, com olhos de inícios.

Não suspeitavas, querido Marcos, que estavas sendo sujeito a aculturação, ao contemplar um adulto comendo uvas raquíticas e formulando desejos para um ano que começava, e no qual iria repetir os mesmos erros que desejara não cometer no último dos dias do ano anterior.

Aqueles adultos eram mesmo assim. Viviam viciados no futuro, adiando futuros, submissos ao ritmo de relógios e calendários. Subviviam.

Viver seria compadecer-se da angústia dos que ainda acreditavam que é o tempo que passa. Muita infelicidade humana findaria. quando se desfizesse o mito da existência de um tempo medido, segmentado.

Nada acabava, quando acabava um ano. Quando um ramo secava, novo ramo germinava, quando uma certeza tombava na arca das inutilidades, novas doutrinas, tão perecíveis como as perecidas, se esboçavam, no rendilhado tecer das efémeras ciências.

Era durável somente o que fazia sentido que se renovasse em cada um dos nossos transitórios dias. Do mesmo modo, nenhum modelo educativo seria perene. E, nos idos de vinte, dava por mim, formulando as mesmas perguntas de há vinte ou trinta anos.

Por que se continuava a desperdiçar precioso tempo, transmitindo aos alunos o que constava de livros que poderiam ser lidos sem intermediário, num tempo próprio, que diferia do ritmo de leitura, dos tempos próprios de outros leitores?

Seria esse desperdiçado tempo o mesmo tempo idolatrado, em cada início de “ano civil”, e cronicamente reconhecido insuficiente para dar todo o programa, no final de cada… “ano letivo”?

Talvez porque um “ano letivo” já não tivesse qualquer sentido, os professores assinalavam o seu início, retomando velhas aspirações, projetos adiados, projetos que talvez pudessem ser realizados no… ano seguinte.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MC)

Jardim de Aruanda, 30 de dezembro de 2042

Já perto do final de vinte e dois, a Internet me fez recordar algo, que eu tentara esquecer. No final da década de sessenta, num debate em torno da proposta de Reforma Veiga Simão, escutei de um professor universitário este misto de ignorância e arrogância:

“Vossa Excelência pode contar com a ajuda da nossa faculdade. O Senhor Ministro pode ficar tranquilo. Sabemos como ajudar os professores primários a melhorar as suas aulas”.

Mais ou menos isso, se a memória não me falha. O ranço instrucionista “baixava” às salas de aula instrucionistas. A ignorância do universitário não tinha limite. Essa criatura desconhecia, por exemplo, a existência de grupos de estudo, que, já nessa altura, em plena ditadura, desenvolviam práticas que o universitário nem imaginava que existissem. Mas, ele era um doutor. E, para o ministro, o interlocutor credível era a universidade.

Naquele tempo, não se falava de inovação, nem de outros termos que, nos idos de vinte, enfeitavam o discurso. Nem o jargão “científico”, com o qual “especialistas” ocultavam ignorâncias. Mas, a velha e rançosa arrogância se revelou, meio século depois da Reforma Veiga Simão. Li num órgão de comunicação social este disparate:

“Universidade ajuda o Ensino Básico”. Com o subtítulo: “Parceria entre universidades e escolas é caminho para salto de qualidade na educação”. A autoria do disparate era atribuída a uma coisa chamada “Notas & Informações”.

Mais uma vez, a universidade se disponibilizava para “ajudar”.

A minha reação à leitura do disparate foi um impropério que aqui não citarei. E uma profunda náusea.

Eu temia que a nova velha “parceria” acontecesse. O “salto de qualidade” só poderia ser um salto para trás, quiçá para mais uma queda no abismo da hecatombe escolar.

No início dos anos noventa, o vosso avô foi convocado para uma reunião com o diretor de turma do vosso pai. O André frequentava o Ensino Secundário, numa turma considerada “difícil”. Por pudor e por consideração aos verdadeiros professores, não contarei o que aconteceu na reunião com aquele professáurio diretor de turma. Vos direi apenas que humilhou os pais dos alunos.

Passada uma semana, calhou de eu abrir um curso de formação de professores do Ensino Secundário. E, entre os vinte e cinco formados, lá estava o professáurio. Estrábico, o observei, sem que ele se apercebesse de que o estava observando. Olhava para mim com ar de quem pensa: “de onde conheço esta pessoa?”

No intervalo, veio ao meu encontro. Preguntou:

“Em que faculdade o Senhor Doutor dá aula?”

Respondi:

“Eu não dou aula. Nem trabalho na universidade.”

“Eu acho que conheço o Senhor Doutor. Está na pesquisa? Pergunto isso, porque faço muita pesquisa.”

“Não sou doutor, nem quero ser. Sou mestre em ciências da educação. Faço pesquisa, mas não é daí que o colega me conhece.”

“Colega? Mas eu só sou licenciado. O Senhor Doutor subiu na carreira.”

“Considero que não subi nem desci na carreira. Trabalho numa escola básica.”

“Eu trabalho na Secundária.”

“É mesmo daí que você me conhece. De uma reunião de pais que o colega conduziu, há uma semana.”

O professáurio mudou de cor. Engasgou-se na fala. Pediu desculpa e se foi.

No dia seguinte, uma funcionária da Ponte perguntou se eu estava a dar um curso. Respondi afirmativamente.

“É que o meu sobrinho é seu aluno. E está preocupado.”

“Porquê?” – perguntei.

“Porque me disse que tem medo de que o Professor Zé o reprove no curso. Ele precisa do diploma.”

Uma universidade reprodutora de mentalidades tacanhas, como a desse professáurio, poderia “ajudar o Ensino Básico”?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXCIX)

São José d’Imbassaí, 29 de dezembro de 2042

Em “A face oculta da escola”, Enguita assim descrevia uma absurda situação:

A sucessão de períodos muito breves – sempre de menos de uma hora – dedicados a matérias muito diferentes entre si, sem necessidade de sequência lógica entre elas, sem atender à melhor ou à pior adequação de seu conteúdo a períodos mais longos ou mais curtos e sem prestar nenhuma atenção à cadência do interesse e do trabalho dos estudantes; em suma, a organização habitual do horário escolar ensina ao estudante que o importante não é a qualidade precisa de seu trabalho, a que o dedica, mas sua duração.

A escola é o primeiro cenário em que a criança e o jovem presenciam, aceitam e sofrem a redução de seu trabalho a trabalho abstrato.”

A tradicional organização do tempo escolar raramente levava em consideração realidades sociais, os ritmos e sazonalidades comunitárias. Acresce que, sendo os educadores as pessoas mais indicadas para a organização do tempo escolar, nos idos de vinte, quase sempre, essa tarefa era entregue a gestores e especialistas de áreas alheias às ciências da educação, que repartiam o tempo em fatias, compartimentando, hierarquizando, instituindo “grades curriculares”, fixando o tempo concedido ao ensino de cada disciplina, tudo previsto, tudo inerte.

Pela administração escolar eram apresentados pseudoargumentos. Por exemplo, que seria impossível criar as comunidades de aprendizagem a meio de um ano letivo e que não havia edifícios onde funcionassem. Foi respondido que as comunidades de aprendizagem não carecem de edifícios para as albergar. Não faltam instalações, espaços de aprendizagem: centros culturais, a natureza, a praça, a igreja, a casa, a Internet…

Foi explicado que numa comunidade de aprendizagem não há ano letivo, semestre, trimestre, bimestre, nem um determinado número de dias letivos, porque se aprende nas vinte e quatro horas de cada dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano civil. Que os jovens não entram nem saem da “escola” no mesmo horário. Que não há salas de aula, divisão em turmas, ano de escolaridade. Que não há toques de campainha, que os jovens não têm de fazer xixi ou se alimentar em intervalos, porque não há intervalos (melhor dizendo, cada pessoa vai ao banheiro ou ao refeitório, quando precisa).

Quando decidimos criar a primeira comunidade de aprendizagem, não havia obrigação de apresentar provas da legalidade dessa nova construção social. Quem teria de provar não ser possível a mudança seriam aqueles que usavam as leis a seu bel prazer e impunham às escolas uma situação de ilegalidade.

Quando nos perguntaram pelo “projeto”, respondemos que o projeto era o da escola, um documento que os professores não liam e que, na prática, contrariavam.

Ninguém poderia alegar desconhecer a lei (e o projeto era lei) e a anómala e generalizada situação poderia mesmo configurar falsidade ideológica.

Pela enésima vez nos disseram que não poderiam criar uma escola a meio de um ano letivo. Pela enésima vez, perguntamos: O que impede?

Recusando dialogar, os “superiores” acreditavam ter impedido a realização do projeto. Engano ledo e cego, porque não carecíamos de autorização “superior”. Embora alguns professores tivessem recuado, talvez com medo de perder o emprego, educadores éticos mantiveram-se leais ao projeto, que recomeçou, mais forte do que antes, suportado na lei, fundamentado numa ciência prudente e numa digna desobediência.

No dezembro de há vinte anos, nasceu o primeiro círculo de aprendizagem. Fora de tempo? Fora do tempo? Sem tempo?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXCVIII)

Cachoeiras 28 de dezembro de 2042

Permiti, queridos netos, que vos volte a falar do… tempo.

A insistência da instituição escolar em negar as diferentes relações que os alunos estabeleciam com o tempo contribuía para que fosse instituída nas escolas uma rotina que tudo abarcava. Por exemplo: a abstração “turma” deveria aprender, até ao final de um semestre, um determinado conjunto de conteúdos.

Insistia-se em tratar o tempo de forma homogénea. Todos os alunos eram submetidos às mesmas tarefas, cumpridas num mesmo tempo. Essa prática era justificada com o argumento de que seria democrática, uma vez que, supostamente, todos tinham as mesmas oportunidades e a todos era exigido o mesmo exercício.

Urgia identificar práticas de gestão do tempo e analisá-las criticamente, saber da repercussão nos resultados acadêmicos e outros efeitos. Saber por que se estabelecia a quantidade de horas de cada matéria, datas de (supostas) avaliações, períodos de férias e dias letivos, como se não existisse um currículo subjetivo, como se não se aprendesse nas vinte e quatro horas de cada dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano.

Da imposição do “ritmo único” decorria parte significativa de fenômenos como o desinteresse, a desmotivação, a indisciplina. Alguns pesquisadores o disseram. E, preocupados com a “eficiência” e a “eficácia” de um modelo educacional obsoleto, incidiam a sua atenção no tempo gasto pelos professores na correção de provas, na preparação das aulas, perdas de tempo no planejamento das aulas, nos atrasos entre classes. Identificavam aquilo que qualificavam como gestão ineficiente do tempo escolar, que implicava aumento de custos para as instituições, para a produtividade.

Resultava desses “estudos” a recomendação do uso de modernas panaceias, que substituíam, por exemplo, o preenchimento manual de tabelas, softwares com algoritmos específicos, que davam origem a melhores combinações de horários. Isto é: partindo do pressuposto de que deveria haver horários pré-fixados.

Delirantes “estudos” dividiam o tempo considerado útil em três componentes: o tempo que o professor e os alunos demoravam a chegar à sala de aula, após o toque para a entrada; o tempo que o professor demorava para dar informações aos alunos sobre as tarefas a realizar; o tempo que o professor demorava para organizar a sua aula, como o de fazer a chamada; E o tempo efetivo de aula era o tempo… que sobrava.

Em pleno século XXI, o debate sobre a gestão do tempo escolar permanecia embotado de absurdos, como o de considerar ser possível a coexistência de uma melhor educação com a manutenção de dispositivos pedagógicos desprovidos de qualquer fundamento científico, como: sala de aula, tempo letivo, carga horária….

Raramente encontrávamos estudos que não partissem do pressuposto de que o tempo de aprender era o tempo passado em sala de aula. Exemplo típico desse equívoco: quando um antropólogo demonstrava a necessidade de a sociedade compreender as peculiaridades da percepção e uso do tempo, afirmava ser muito importante que o conceito de tempo fosse entendido como vinculado à prática, pelo que as “aulas” de matemática deveriam ser administradas pela manhã, supostamente, porque o aluno teria maior capacidade de “absorver conhecimento”.

Pensando com os meus botões, não achava resposta para uma indagação, há muito tempo alimentada: seriam esses “pesquisadores” colegas das ciências da educação? Não queria acreditar que o fossem. Mas, acaso algum deles o fosse, padeceria da cegueira moral e ética, de que Bauman nos falara?

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXCVII)

São José do Vale do Rio Preto, 27 de dezembro de 2042

Vinte anos atrás, o vosso avô dizia que, quando fosse habitar o seu lugar etéreo, iria sob protesto. E que, se saudade fosse consentida no além, nostalgicamente, recordaria o nascer do sol, os tons carmim e violeta no horizonte matinal, os azuis e prateados do crepúsculo nas águas da lagoa.

Nesse tempo, ainda havia quem fizesse previsões. Agora, que o tempo se me escapa e os parcos saberes de velho me mostram serem inúteis vaticínios e premonições, recordo finais de ano de abundantes presságios e de profecias de fim dos tempos.

A cronobiologia provava que o tempo escolar instituído no decurso da primeira revolução industrial contrariava os ritmos biológicos e circadianos dos alunos, desconsiderava os ritmos ultradianos, que ocorriam em períodos inferiores a 20 horas, ritmos internos e hereditários. Ignorava os ritmos circadianos, que ocorriam num período aproximado de 24 horas. E os infradianos, que aconteciam em períodos superiores a 28 horas.

Mas, a Escola, que deveria ser tempo de reelaboração cultural e transformação social, também reproduzia ilusões. Ela mesma era falsidade temporal, pois separava o tempo cotidiano do tempo de aprender. Se todos sentíamos o passar do tempo, independentemente das horas, minutos e segundos, o tempo pessoal e único, por que razão as aprendizagens não se processavam segundo o tempo de desenvolvimento biológico, emocional e cognitivo dos alunos?

As escolas deveriam considerar as necessidades de alunos matutinos como as dos vespertinos, pois o pressuposto de que todos os alunos se adaptavam não passava de um pressuposto sem fundamento.

Por que razão não se adaptava a escola às características biopsicológicas dos alunos, se cada aluno era único e irrepetível, e aprendia de acordo com o seu ritmo? Por que razão as ciências da educação não reconheciam o conceito “ritmo de aprendizagem”, permitindo que a burocracia abrisse caminho para impor uniformizações?

Para que se pudesse conceber a construção de novas relações com o tempo escolar, seria indispensável um esforço traduzido na possibilidade de uma aprendizagem que fizesse sentido, que cada professor, no quadro de um projeto de vida, de transformação da sua cultura pessoal e profissional, inquirisse e pesquisasse: o que é o tempo?

Tínhamos um tempo social urbano, adaptado a necessidades sociais da segunda metade do século XIX, o tempo da industrialização, que marcou a emergência da escola da modernidade. E existia a nossa noção de passagem do tempo, derivada da repetição de eventos cíclicos.

Sair da rotina requeria uma profunda mudança de atitude. Em escolas onde eu colaborava e aprendia, jovens e adultos aprendiam a gerir o tempo. Os professores não gastavam tempo a planejar aulas para turmas, aulas iguais para todos. Não planejavam a vida dos outros, respeitavam os jovens e ajudavam-nos, ensinando-os a planejar as suas vidas, a planejar-se.

Esta cartinha teve como inspiração uma deliciosa crônica de Rubem Alves: “Tempus Fugit”. Vo-la recomendo. E, como 2042 está prestes a terminar, aqui vos deixo a reflexão do amigo Rubem a propósito do… tempo:

“Há também o tempo que se mede com as batidas do coração. Ao coração falta a precisão uniforme dos cronómetros. As suas batidas dançam ao ritmo da vida – e da morte. Tranquilo, de repente agita-se, dá saltos, tropeça… A esse tempo de vida os Gregos davam o nome de Kairós – para o qual não temos correspondente. A nossa civilização tem palavras para dizer o tempo dos relógios. Mas perdeu as palavras para dizer o tempo do coração.”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXCVI)

Iguaba Grande, 26 de dezembro de 2042

Para que se perceba a dimensão da tragédia humana provocada por um modelo de ensino fora do prazo de validade, atentai nestas notícias dos idos de vinte:

“Fulana compartilha clique na banheira e esquenta o clima na web. Aproveitou a noite para compartilhar cliques sensuais no Instagram. Ela apareceu só de toalha na banheira, chamando a atenção dos seguidores e recebendo uma chuva de elogios na rede social. “Dia de bater o barbeador no azulejo”, escreveu na legenda, dando a entender que era o momento da depilação. “Queria estar plena assim no chuveiro”, disse uma seguidora.”

Ao exibicionismo juntava-se a ignorância e a frivolidade:

“Beltrano comove a web com formatura do filho no Ensino Fundamental II. Compartilhou uma foto em que aparece com o formando abraçado. Passamos por anos complexos em meio à pandemia: você acordando cedinho todos os dias, estudando e se dedicando, mesmo com as dificuldades e a novidade do ensino remoto. Depois de mais de um ano, voltou para a escola e teve que se redescobrir socialmente. Aulas complexas… ‘Pra quê matemática, física, química?’. Também nunca entendi! Sempre fui de humanas.”

Um leigo poderia desconhecer a origem do ritual de “passar a corda do capelo do lado direito para o esquerdo” e de “jogar os capelos para o alto”. Não se poderia exigir que aderisse a rituais de passagem manifestações de “status”, analogia de uma coroa real, símbolo hierárquico, reconhecimento de poder.

A educação familiar e social se inspirava no Big Brother (talvez dele não vos recordeis desse repugnante programa de TV, consumido por milhões de voyeurs). E a educação escolar alimentava-se de competitividade negativa e “seleção natural”. Até havia “formaturas de crianças de três anos”! Insanidade total!

Igreja e Escola partilhavam a mesma origem. Numa instituição teocêntrica, fazia sentido o ritual de nomeação de novos cardeais, que se ajoelhavam para receber o capelo de cor púrpura das mãos do papa. Mas, por que razão a instituição Escola, supostamente leiga e democrática importara rituais sem sentido, a não ser o do lucro obtido por empresas do ramo:

“Precisa de uma empresa de formatura para tomar conta de todos os detalhes da festa de formatura da sua turma?”

Queridos netos, juro que boçalidades deste calibre abundavam nas redes sociais e na grande mídia. Mas, não penseis que a boçalidade fosse exclusiva de uma mídia glamorosa. Era do campo de Educação que partiam os maiores disparates.

Por que haveria o Ensino Fundamental II, a que o extremoso pai se referia? E o que eram “aulas complexas”?

Uma das variáveis mais importantes da organização escolar e revelador da cultura de escola era…o tempo. E, nos idos de vinte, subsistia um tempo administrativo separado de um tempo de vida vivida. Vos oferecerei exemplos de disparates a propósito da gestão do tempo escolar colhidos em revistas “especializadas”. Como estes:

“Quais são os melhores horários de entrada e saída? Qual é a duração mais adequada das aulas e quanto tempo os jovens devem permanecer na escola diariamente? Qual a periodicidade em que devem ser feitas as avaliações.”

Aulas! Escola-prédio? Periodicidade da avaliação que, por lei, deveria ser contínua! Poder-se-ia admitir que o autor dessas linhas fosse um “especialista”?

A Educação não é para amadores. Mas, nesse tempo, estava entregue nas mãos de aprendizes de feiticeiro da Educação: dadores de aula, áulicos, empresários.

Esses despropósitos já não me surpreendiam. Já só perguntava:

Quando findaria essa praga?

E onde estariam os “especialistas”?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXCV)

Itapeba, 25 de dezembro de 2042

Junto à lagoa, nasce uma preguiça maior do que o mundo. Não sei se por efeito de vinícolos eflúvios, deu-me para deitar na rede e nada escrever. E, remexendo no baú das velharias em busca de algo que invocasse a quadra natalícia, achei um escrito da Rúbia, paraibana socióloga, folclorista e incansável curiosa.

Sei que esse escrito vos agradará. A Rúbia Lóssio descreve o Natal dos simples muito melhor do que eu conseguiria. Onde estiver, que a Rúbia sinta este reuso do seu texto como uma singela homenagem, preito de gratidão.

“Quem inventou o Natal? Festa universal que mistura essência pagã com essência cristã. Comemoração do solstício do inverno. Noite de reflexão social, espiritual, ética e moral. Noite de luz e de fé. Para as crianças de hoje Papai Noel, é pop. Mas, e para os meninos de olhares vazios no futuro eterno que ficam nos sinais de trânsito pedindo dinheiro, como será o seu Natal, ou melhor como seria o seu Natal? E para os lares sem enfeites e ceia, para onde foi o Natal?

Festa triste, mas singela, o Natal pode ser representado com o presépio. Francisco de Assis ajudou a propagar o nascimento de Jesus. As pastorinhas numa doce homenagem anunciam a chegada do menino Deus.

Numa batalha entre o bem e o mal o Natal surge para nos oferecer um momento de pensarmos na vida e no que fizemos dela. Como diz Carlos Drummond de Andrade no poema O que fizeram do Natal, “…As beatas ajoelharam e / adoraram o deus nuzinho / mas as filhas das beatas / e os namorados das filhas, / foram dançar black-bottom / nos clubes sem presépio.”

Talvez não percebamos, mas existe o natal religioso e o profano. E, como diz Fernando Pessoa, “Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade / Nem veio nem se foi: o Erro mudou. / Temos agora uma outra Eternidade…”

Nesse sonho de eternidade buscamos resplandecer no Natal. Abram as portas, chegou o Reisado! Brincadeira popular, forma de expressão que traz luz e esperança diante da chegada do menino Deus. No ritual de celebração ao nascimento de Jesus Cristo, o Reisado faz do ciclo natalino um tempo de reinvenção da história do nascimento de Jesus Cristo.

Há no Pastoril, no presépio dançado, o encanto do Natal. No cordão azul e no cordão encarnado as pastorinhas exibem a alegria em adorar o menino Deus. Na construção da identificação do Patrimônio Cultural as manifestações do ciclo natalino contemplam um tempo de bençãos. Há uma exposição das relações sociais nas manifestações das culturas populares. Mas, o que realmente interessa no Natal? O espírito natalino? Os sonhos? Os encontros e a confraternização? A família e a ceia? Os presentes? O papai Noel? Seria o Natal uma farsa?

Como diz Charles Dickens no Conto de Natal, “Talvez o Natal venha mostrar o sentimento de amor, amizade, gentileza e ternura. Talvez, o Natal seja a data mais introspectiva do calendário. Mesmo anunciando o nascimento do menino Deus o Natal é uma data triste.” Mas, como diz Vinícius de Moraes em seu Poema de Natal, “Para isso fomos feitos: / Para lembrar e ser lembrados / Para chorar e fazer chorar / Para enterrar os nossos mortos — / Por isso temos braços longos para os adeuses / Mãos para colher o que foi dado / Dedos para cavar a terra. / Assim será nossa vida: / Uma tarde sempre a esquecer…”

Cora Coralina revela o Natal com otimismo, “Tem presente de montão no / estoque do nosso coração / e não custa um tostão! / A hora é agora! / Enfeite seu interior! / Sejas diferente! / Sejas reluzente!”

Nada melhor do que enfeitar o nosso interior. Neste Natal construa uma comunidade de afetos. Comece pensando o bem, querendo o bem e fazendo o bem. Feliz Natal!”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXCIV)

Terra do Brincar, 24 de dezembro de 2042

Sempre que chega este dia, chega com ele a memória do último Natal com a Mãe Luísa e com o amigo Rubem. Pressinto que este seja o último dos meus natais, que deva reatar as conversas com o Rubem, deixando ao seu cuidado a feitura desta cartinha. Que ele nos fale de ausências e de reencontros do Natal de todos os dias.

“Menino, lá em Minas, havia uma coisa, uma única coisa que eu invejava nos católicos: no Natal, eles armavam presépios e nós, protestantes, tínhamos árvores de Natal. Mas as árvores, por bonitas que fossem, não me comoviam como o presépio: uma cabaninha coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis anjos e estrelas, numa mansa fraternidade, contemplando uma criancinha.

A contemplação de uma criancinha amansa o universo. Os católicos mais humildes tinham alegria em fazer os seus presépios. As pobres salas de visita se transformavam num lugar sagrado. As casas ficavam abertas para quem quisesse se juntar aos reis, pastores e bichos. E nós, meninos, pés descalços – os sapatos só eram usados em ocasiões especiais – peregrinávamos de casa em casa, para ver a mesma cena repetida.

Nós, meninos, com inveja, tratávamos de fazer os nossos próprios presépios. Os preparativos começavam bem antes do Natal. Enchíamos latas vazias de goiabada com areia, e nelas semeávamos alpiste ou arroz. Logo os brotos verdes começavam a aparecer. O cenário do nascimento do Menino Jesus tinha de ser verdejante.

Sobre os brotos verdes espalhávamos bichinhos de celuloide. Naquele tempo ainda não havia plástico. Tigres, leões, bois, vacas, macacos, elefantes, girafas. Sem saber, estávamos representando o sonho do profeta que anunciava um dia em que os leões haveriam de comer capim junto com os bois e as crianças haveriam de brincar com as serpentes venenosas.

A estrebaria, nós mesmos a fazíamos com bambus. E as figuras que faltavam nós as completávamos artesanalmente com bonequinhos de argila. Tinha também de haver um laguinho onde nadavam patos e cisnes. Não importava que os patos fossem maiores que os elefantes. No mundo mágico tudo é possível. Era uma cena “naif”, primitiva, indiferente às regras da perspectiva. Um presépio verdadeiro tem de ser infantil. E as figuras mais desproporcionais nessa cena tranquila éramos nós mesmos. Porque, se construímos o presépio, era porque nós mesmos gostaríamos de estar dentro dele. Éramos adoradores do Menino, juntamente com os bichos, as estrelas, os reis e os pastores – não importando que estivéssemos de pés descalços e roupa suja.

Eu sempre me perguntei sobre as razões por que essa cena, em toda a sua irrealidade onírica, mexe tanto e tão fundo comigo. Não sinto alegria ao contemplar a cena. Sinto uma tranquila beleza triste. Gosto dela. É uma ausência aconchegante.

O Drummond escreveu um poema chamado Ausência. Não sei a propósito de quê – se era por causa de um amor perdido, de uma pessoa querida que estava longe – a saudade doía. E ele escreveu, para se explicar e consolar: “Por muito tempo achei que a ausência é falta / E lastimava, ignorante, a falta / Hoje não a lastimo / Não há falta na ausência / A ausência é um estar em mim / E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços / que rio e danço e invento exclamações alegres / porque a ausência, essa ausência assimilada / ninguém a rouba mais de mim.”

O presépio nos faz querer voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer.

Na manjedoura, dorme uma criança. O nome dessa criança é o nosso nome.

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXCIII)

Barracão dos Mendes, 23 de dezembro de 2042

Naquele tempo, havia quem tivesse medo de que o medo acabasse, que se extinguisse o medo de ser, o medo que fazia desaprender.

Também, havia quem seguisse o preceito de Mia Couto: que a nossa indignação seja maior do que o medo.

Aliei-me a educadores sem medo, que me pediram ajuda para fazer uma escola diferente de outras escolas. Na última semana do ano da graça de vinte e dois, entre Natal e Ano Novo, não faltou coragem para encarar temores e ignorâncias. Um círculo de aprendizagem se constituiu junto à lagoa, que viria a transmutar-se em ágora congregadora. Quando preparava essa “semana experimental”, a memória me transportou para um tempo em que o medo provocava abdicação. E a reflexão sobre fracassos me ajudou a preveni-los.

Foi numa Brasília sitiada, que tudo ocorreu em dois tempos. No primeiro, uma tomada de decisão sem medo e o defrontar de obstáculos. Decorridos quatro anos, eis que o medo volta a dissipar-se e o projeto se concretiza.

Entre 2016 e 2018, gastamos muita energia, muita paciência, muito dinheiro, a tentar contornar empecilhos inventados pela administração educacional. Dou-vos um exemplo.

A equipe de projeto encontrou um edifício que, depois de adaptado, poderia vir a ser a sua ágora. A expensas suas a equipe de projeto contratou um engenheiro. Uma arquiteta amiga fez o projeto de adaptação do edifício. E, para além de colaborarmos no projeto, gratuitamente, ainda pagamos o trabalho de um estagiário.

A administração escolar nunca perguntou que despesas fizemos. E informaram que os engenheiros responsáveis pelas construções escolares tinham vetado a utilização do prédio, porque não tinha… salas de aula (mal sabiam que também não teria “sala de professores”, nem instalações sanitárias para professores separadas das dos alunos).

“Como é que pode não ter sala de aula?” – questionaram os engenheiros.

“Por que deverá ter?” – perguntei. E expliquei aos engenheiros, de modo que um engenheiro leigo no domínio das ciências da educação entendesse, que sala de aula era coisa do século XIX. Se houvesse um prédio, tanto melhor, poderíamos abrigar-nos das intempéries. Mas não seria indispensável que houvesse um edifício a que chamassem escola.

Insensíveis, tentando disfarçar tiques autoritários, disseram não entender o que estavam a ouvir, lamentaram-se das canseiras, que lhes consumiam as horas e lhes desgastavam os nervos.

Foi-lhes dito que as novas práticas reduziriam a carga burocrática, origem dos seus queixumes. Reagiram com agressividade:

“Era só o que faltava! O que você está a dizer é um absurdo! Onde já se viu? Uma escola tem de ter salas de aula. Sempre foi assim! E os professores têm de fazer o registo diário das aulas que derem e os sumários da matéria ensinada.”

“Não faremos tais registros, porque não daremos aula.”

“O que quer dizer com isso?”

“Isso mesmo.”

Sem saber o que responder, como argumentar, em tom de ameaça, advertiram:

“Do nosso ponto de vista, tem de ser como nós achamos que deva ser.”

“Prezados, somos formados em ciências da educação. Vós sois engenheiros e arquitetos. Eu nunca daria sequer opinião sobre engenharia ou arquitetura escolar. Então, peço que não se atrevam a “achar”. Somos da educação e entre nós não existe “achismos”, nem “pontos de vista” sobre educação.

Ao cabo de muitas reuniões, conseguimos contornar esse e outros obstáculos. Os “achistas’ cederam. Ficamos amigos e… sem salas de aula.

Esse desfecho feliz talvez tivesse sido o primeiro sinal de que a pedagogia começava a ocupar espaços antes ocupados pela burocracia.

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