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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXII)

São José, 21 de janeiro de 2043

Perguntareis pelo porquê desta cartinha e vos digo que tem muitos porquês. Ela inaugura uma sequência de cartinhas, nas quais tentarei fazer-vos chegar uma imagem aproximada de pelejas educacionais, de êxitos e fracassos, de assomos de Vida e de iníquas vitórias da Morte. Como a da Mãe Luíza, que faleceu nos meus braços, faz hoje, exatamente, sessenta e oito anos.

Netos queridos, recomendo-vos a leitura integral dos poemas, que vos deixo, pois a transcendência possível sempre foi alcançada pelo caminho da poesia e da música. Como diria Sebastião da Gama: “Pelo sonho é que vamos”

Foram muitos os dias como o de hoje, em que lembrei versos do Chico:

“Tem certos dias em que eu penso em minha gente / E sinto assim todo o meu peito se apertar / E aí me dá uma tristeza no meu peito / Feito um despeito de eu não ter como lutar / E eu que não creio, peço a Deus por minha gente / É gente humilde, que vontade de chorar.”

Não eram dias de lamentar, mas de chorar por dentro, por não conseguir extinguir a mentira, que o Ivan cantava:

“Entrei num lugar estranho, que eles chamam de cidade / Com tanta mentira solta que assustou minha verdade / Vieram com uma baboseira, e uma tal prosa fiada / De bobo não tenho nada, não foi ontem que nasci.”

Dias de sentir vergonha de não ter ido mais além na denúncia cantada pelo Leonard: 

“Sail on, sail on / O mighty ship of state! / To the shores of need, past the reefs of greed / Through the squalls of hate.”

Nesses dias de não viver, me culpava pelo desprezo a que Cartola fora votado:

”Se eu pudesse gritaria / É necessária a nova abolição / Para trazer de volta a minha liberdade.”

E relia o poema-manifesto de Régio, que a Bethânia, apesar de lhe subtrair versos, magistralmente, declamava:

“Vem por aqui” / Dizem-me alguns com os olhos doces / Eu olho-os com olhos lassos / (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) / E cruzo os braços / E nunca vou por ali / Corre nas vossas veias / sangue velho dos avós / E vós amais o que é fácil! / Ide! Tendes estradas / Tendes pátria, tendes tetos / E tendes regras e tratados / Ninguém me diga: “vem por aqui”! / Não sei por onde vou / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!”

Por aqui me quedo, nesta “colagem” de textos, pedaços da alma de poetas e cantores dos quatro cantos do mundo. textos que guardei numa espécie de “portfólio”, que sempre me acompanhou num quixotesco caminhar. Nele guardei memória de tudo o que havia de significativo na minha vida anterior à andarilhagem. 

Guardei o livro de poemas do Brell, que a professora de francês (que eu amei e me amou) me oferecera, nos idos de sessenta. Num envelope, a camisa branca, que me vestiram no dia em que nasci (por setenta anos a conservei). Colei numa cartolina amarelecida recortes de jornal com notícias de xadrezisticas vitórias e boletins escolares (com boas notas) que, orgulhoso, o vosso bisavô a todo o mundo mostrara. Juntei o cheque de pagamento do meu primeiro trabalho, a última carta recebida da Mãe Luíza, reportagens da Revoluçao dos Cravos… toda uma Vida reunida em minguado espaço.

Na Ponte, durante décadas, fui o único professor homem e agradeço às minhas companheiras de projeto terem-me ensinado a ver o meu lado feminino. Com elas, reaprendi a chorar – o meu pai me proibira de chorar por fora. 

Por décadas, o “portfólio” de memórias me acompanhou. Até que, certo dia, desapareceu. Nesse dia, chorei por dentro lágrimas de compaixão por quem cometeu tamanha maldade.

Entendi o desaparecimento como sinal de que também eu deveria desaparecer, dar lugar a quem soubesse corrigir os meus erros.  

Apelei ao dom do desapego. Saí de cena. Fui viver.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXXI)

Sobral, 20 de janeiro de 2043

Quisestes saber por que critiquei a “sobralização” dos idos de vinte e aqui vos deixo mais algumas “explicações”.

Sempre que ouvia falar de algum projeto “dissidente”, eu viajava para os observar e aprender. Viajei Portugal e a Europa, de lés a lés. Fui até à África, à Índia, ao fim do mundo. 

Quando ouvi falar de uma famosa escola sul-americana, aceitei o convite recebido e fui até à Colômbia. Decepção total! Não passava de mais uma importação de projetos que tinham dado errado na América do Norte, na versão digital.

Rumei ao norte da América. Visitei universidades, fundações, escolas. Em Nova Iorque, de sala em sala, percorri um espaço a que chamavam escola, mas que se assemelhava a um cassino. Os alunos jogavam skynerianos videogames, sem lhes entender o sentido. E fiquei preocupado, quando me apercebi de que a universidade brasileira já se apaixonara pela “gamificação”. 

À revelia de fundamento científico sólido, especialistas em games tinham concebido plataformas que disponibilizavam uma narrativa base estruturada, que conduzia os alunos a experiências imersivas e interativas. 

Os jovens recebiam desafios e precisavam vencê-los para “passar de ano”. A “educação empreendedora gamificada” era, por regra, a recuperação do modelo industrial taylorista apoiado no digital e mais uns pozinhos de psicologia comportamental produtora de robotização. E só o filho da Bianca foi exceção à regra  

Entretanto, soube que um norte-americano havia “inventado” algo a que deu o nome de flipped classroom, vulgo “aula invertida”. Fui xeretar. Em que consistia? Numa ensinagem “invertida” em sala de aula.

Era mais do mesmo, o instrucionismo na sua fase delirante. O professor deixava na internet e na sala de aula o material que deveria ser trabalhado, armazenado numa plataforma digital. O guia “flipped classroom “ estabelecia que o professor liberasse o tema a ser aprendido, mas sem ensiná-lo. E que selecionasse algumas fontes para estudo. Depois, o aluno consumia currículo, fora da escola, desde que não fugisse do tema proposto. Ridículo “trabalho de casa”!

Cem anos antes, o Celestin e a Elise tinham feito exatamente o mesmo, mas sem computadores. E, há décadas, a Ponte havia imitado Freinet e abandonado essa prática. 

Esse paliativo acabou encaixado num outro, a que chamavam “ensino híbrido”, originalmente designado por “aprendizagem misturada” (Blended Learning). 

Em abono da verdade e em bom português, esse paliativo deveria ser designado por ”aprendizagem misturada”. Por que o batizaram de “ensino híbrido”? 

Era uma mistura de práticas do paradigma da aprendizagem com práticas do paradigma da instrução, miscelânea de ensino a distância e presencial. Como era caraterística das propostas neoliberais os méritos da “novidade” eram demonstrados em “resultados”. Uma universidade norte-americana havia adotado a flipped classroom. E se concluía que os alunos obtiveram “ganhos de aprendizado de até 79%”. Santa ingenuidade universitária!

A substituição da palavra “aprendizagem” pela palavra “ensino” não acontecia por acaso. Era reflexo do condicionamento operado no seio de práticas sociais, que a racionalidade burocrática produzia e que a patetice da administração educacional reproduzia. 

Mas, o que dizer da universidade, que convidava norte-americanos, finlandeses e outros estrangeiros para fazer cursos de introdução de paliativos? 

Quando lhes dirigi essa pergunta, responderam com silêncio e cinismo. 

E Sobral? Também, teria comprado alguma das “novidades”? 

Adivinhai! 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXX)

Sobral, 19 de janeiro de 2043

Netos queridos, abristes uma ferida, há muito, curada. E lá voltamos nós àquelas cartinhas que eu desejaria não escrever. Até porque aludem a pecados velhos, há já muito tempo, redimidos.

No início da década de vinte, intervim numa “live” em que participou a secretaria de educação de Sobral. O encontro decorreu num ambiente de saudável cooperação. Falamos da Ponte e do Projeto Âncora. Reconheceram a excelente qualidade desses projetos. Por isso, no final do encontro virtual, manifestei disponibilidade para manter colaboração gratuita, contribuindo para melhorar a educação que em Sobral se fazia.

Esperaria, no mínimo, uma resposta. Mas ela nunca chegou. Por essa altura, a suspensão do diálogo era apanágio de pedagogos colonizados. Já havia sentido algo semelhante, durante uma reunião num grande colégio de um país da América do Sul.

Pediram-me “consultoria”, um “parecer” sobre uma proposta de contrato. Tratava-se de avaliar um projeto dito “inovador”. Solicitei a sua base teórica. Li-a, analisei-a e cheguei à conclusão de que não possuía qualquer consistência. A metodologia era requentada e havia semelhança com paliativos neoliberais de que vos falei em outra cartinha.

Propus que não se fizesse a compra. Mas houve quem comprasse mais um fake project made in USA. Nessa altura, o processo de mercantilização da escola pública já era exponencial.

Já entendestes por que o Mestre Agostinho não tinha CPF (boletim de contribuinte)? Se o tivesse, os ministérios teriam de lhe “explicar” onde era gasto o dinheiro dos impostos. E, certamente, os ministérios não saberiam explicar o desperdício.

O erário público era saqueado por “modismos pedagógicos”. Empresas, fundações e outras agências financiavam o “aventureirismo pedagógico” e recusavam apoiar projetos efetivamente inovadores. Alegavam “resultados”, publicavam rankings, apelavam à competição negativa, à meritocracia. E, quando essa raposa conseguiu entrar no capoeiro, ficamos em vias de desperdiçar mais quatro anos “apostando em cavalo errado” (metáforas sem ofensa para os animais).

Sobral se gabava de ter atingido o nível 9 do IDEB (índice de decoreba da educação básica). O Projeto Âncora fora muito além de Sobral, atingindo o nível 10 do IDEB (não o índice de “decoreba” de Sobral, mas o de “desenvolvimento”).

A corrupção moral, intelectual e econômica destruiu esse projeto.

Ele tinha por referência a Ponte, uma escola pública que obtivera os, primeiros prémios dos concursos de projetos inovadores, influenciando milhares de professores, escolas e municípios de vários países.

Também muito além de Sobral foi a sua contemporânea Escola Aberta e centenas de outras escolas espalhadas pelo Brasil. Por que razão Sobral fora escolhido?

Talvez porque o que por lá acontecia não perturbasse o status quo. Talvez porque uma opinião pública acrítica conferia credibilidade a rankings e índices falíveis. Talvez porque beneficiasse da injeção de generosos financiamentos. Talvez porque partira da iniciativa política de gente bem-intencionada, mas que da educação necessária nada entendia. Talvez porque um marketing perfeito alindara o produto e suscitara a procura.

Vai para uns vinte anos, o Senhor Ministro dissera ser necessário “um grande pacto colaborativo para a Educação”. Cadê o pacto, se ele mesmo havia transformado Sobral na única referência de qualidade e “farol” de uma nova educação? Por que não aceitava dialogar? Por que razão o ministério não se abria a um debate fundamentado em critérios de natureza científica?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXIX)

Maricá, 18 de janeiro e 2043

Transcrevo, quase integralmente, uma cartinha recebida da Patrícia, com data de 26 de dezembro de 2022. Encontrei-a numa das minhas xeretagens do baú das velharias. E vo-la vos deixo tal qual ela me chegou às mãos. Trata-se de um belo testemunho de alguém que aceitou o convite para participar da gênese de uma nova construção social e que, com poéticas, belas palavras, se expressou.

“Quando eu e Amália achávamos que não haveria mais esperança nem lugar, enquanto Júlia sonhava em ser através da sua arte, nasce, (para nós, por convite, oportunidade de aprender e servir, e misericórdia do Criador) a Terra do Brincar!

Aqui, onde os pássaros insistem, resistem e vivem a cantarolar; onde as estrelas fortemente presenteiam o nosso  olhar e sempre nos contaram o que nem sempre acreditáramos que seria mesmo possível acontecer; onde o vai e vem das ondas da mansa lagoa, que une e multiplica, faz uma bela canção; onde a Lua altiva e altaneira espelha seu prateado sob a superfície das águas, nos mostrando que há caminhos; a esperança toma forma e se materializa em um lugar amoroso, que acolhe e permite que floresçam os espíritos apressados, que nos convidam a atitudes corajosas, para que se façam as transformações necessárias.

Não há mais lugar no Planeta Terra, embora ainda estejamos insistentes em segurar essas mazelas, para o desrespeito, para o ódio, para a manipulação, para a formatação e o encaixotamento de almas, de seres que não suportam mais viver sem a possibilidade de sua expansão e de sua expressão.

É chegada a hora de regenerar os caminhos e ser a Terra do amor, da iluminação, do respeitoso florescer de cada um. Transborda em meu peito a felicidade de uma criança que se encontrou e encontrou o lugar para o seu sonho morar e, enfim! Ser.

Para nossa sorte, o Zé escolheu Maricá para a espera ter a sua vez para acontecer e cá estamos nós, dispostos e entregues ao que viemos a esta Terra fazer e, finalmente, cumprir e atender ao chamado de sermos trabalhadores, enquanto a oportunidade nos permitir e for por nós honrada e dignificada, de um novo amanhecer, de uma nova Terra, onde os seres se renovem e possam se expandir e expandir todo amor que são.

Nesse momento, parece-nos que tudo que vivemos nos forjou para esse “aqui e agora”. E como somos gratos pelo caminho e por cada passo desse caminhar! Grata por esse encontro com o Zé, a Cléo, a Bruna, a Marcela, a Eunice, a Ludmilla, a Malu, a Liz, o Noah e toda gente de todas as idades, que está por aqui chegar.

Grata pelo Evolução estar sendo presenteado com o maior e mais importante momento de sua história, para que possa cumprir a sua missão de servir ao progresso de todos que por lá estejam, passem, se encontrem.

Embalada pela mais profunda gratidão, me entrego para a oportunidade de participar da construção desse amoroso caminho para educação e para as escolas, enfim, serem lugares de ser plena e verdadeiramente feliz.

Um brinde à Terra do Brincar! Com carinho, Patrícia.”

Por essa altura, recebi de “um de nós” mais uma declaração de amor à Terra, um quase-poema, com que encerro esta cartinha:

“Um horizonte verde esmeralda, cabelos ao vento. Ventania de sabedoria, de paixão. Nos observas e eu observo. Sua cabeça branca, banhada pela água esmeralda. Ela é rubi, fogo nos olhos, alerta que nos arrebata. Escuto. Quero ouvir, ver e sentir tamanha paixão.

Quero ficar, não quero mais sair daquela mesa, daquela casa, das joias raras ao alcance de nossas mãos. E vejo que já faço parte de uma comunidade. Que é ali que vamos estar. Já vejo crianças correndo, e já me vejo com elas, aprendendo a vida.”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXVIII)

São José dos Campos, 17 de janeiro de 2043

O amigo Paulo César era implacável na crítica do “sistema”. E sabia mais de avaliação do que os doutores do ministério da educação. Parasitei um texto, que ele escreveu no facebook de há vinte anos.

“Equidade? Não somos diplomas, somos pessoas.” Li esta frase num cartaz, há dias. Claro que concordei. A Educação é uma área com uma quantidade absurda de ideias pré-concebidas e tomadas de pressuposto. O peso que tem o mensurável, o número, a nota, desvirtuou todo o processo, e é, ao mesmo tempo, mentiroso, ou então falacioso, porque deixa de fora toda uma série de variáveis, a começar logo pela equidade e pela questão emocional.

A febre examinadora dos testes, dos exames, das orais, que quer fazer-se passar por “rigor”, por “excelência” e por “exigência”, não mais é do que uma pequena ilusão num mundo demasiadamente vasto, repleto de informação e conhecimento.

Tudo não passará de uma sensação de controlo, de uma ilusão de poder e conhecimento de uma parte sobre outra, procurando a reprodução, ad nauseam, dessa mesma base.

A Educação dos “diplomas” prepara para o imediatismo e para as respostas em testes e exames, ignorando a imprevisibilidade e a surpresa da vida. A Educação não é uma fórmula: podem ser muitas, mas qualquer uma delas não é, nem poderá nunca ser, à imagem de quem à mesma se aceita submeter, um dado adquirido.

Tornou-se conhecida uma expressão, muitas vezes partilhada, supostamente oriunda da África do Sul, sobre o ato de copiar (cabular). Rezava assim:

“Para destruir qualquer nação não é necessário usar bombas atómicas ou mísseis de longo alcance. Basta apenas reduzir a qualidade da educação e permitir que os estudantes ‘copiem’ nos exames.”

(…) As bombas atómicas e os mísseis de longo alcance são, também, resultado de um tipo de educação que privilegia a competição e a não compreensão do outro: a negação holística do ser, enquanto um todo; segundo, a qualidade da educação não anda acoplada a haver mais ou menos exames, mais ou menos testes, mais ou menos provas. A febre examinadora não passa de um mito quantificador (e redutor), facilitista.

O que acontece, na generalidade das provas, testes, exames, é replicar, acriticamente, o que vem nos manuais. É avaliada a capacidade de memorização a curto prazo (…) não existem, axiologicamente, grandes diferenças entre copiar e memorizar para um determinado fim. Replicar conteúdo não significa, taxativamente, qualidade, até porque um programa é sempre truncado, deixando imenso de fora. O que destrói as nações é a falta de espírito crítico, a falta de inovação, a falta de prática, a falta de respostas criativas aos problemas e, também, a falta de percepção emocional quando deparados com desafios. E a falta de empatia.

O ministro da Educação prometeu muito, mas é um tiro completamente ao lado: “Governo acredita que valorizar os exames é promover a equidade”. Passamos de um cenário em que o fim dos exames foi equacionado, e bem, para uma em que os mesmos ganham um peso-extra. É inacreditável esta inversão de marcha. Equidade? O governo sabe o que é equidade? Famílias sobrecarregadas, mal pagas, com contas sem fim às costas, com responsabilidades acrescidas, com mais do que com o que se preocupar, vão agora levar com a ‘equidade’ dos exames: trabalhar para resultados mentirosos, profundamente mentirosos, vai abrir uma clivagem ainda maior entre os que podem mais e os que podem remediadamente ou menos. Equidade?”

Fecho de aspas não significava fecho de debate. Ele apenas começava. E eu agradecia.

Bem hajas, querido amigo!

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXVII)

São Paulo, 16 de janeiro de 2043

Tento organizar um núcleo documental, espólio de anos de andarilhagem, que possa ser útil a pesquisadores vindouros. E o meu baú das velharias é uma caixinha de surpresas. Ontem, quando procurava umas recordações da Mãe Luíza, achei dois documentos reflexos do que de mais significativo acontecia nos idos de vinte.

Nesse tempo, eu ainda imprimia alguns documentos. E esse meu “pouco ecológico” hábito os salvou de se perderem em pen drives, que já não funcionam.

Trata-se de um esboço de matriz axiológica e do anúncio de um encontro “separador de águas”. Já percebestes que esta será mais uma cartinha “didática”…

Comecemos pela leitura da introdução da matriz axiológica, que a Tina, a Zizi, o Leo, o Antônio, a Valéria e o Mauro compuseram e que foi aprovada, sociocraticamente. Todos os projetos se iniciavam pela definição de valores comuns. E o daquela equipe de coordenação não escapou à regra.

“Somos uma rede de educadores. Praticamos educação em círculos de comunidades de aprendizagem. Os valores que nos sustentam são: compromisso, ética, cooperação, respeito e ousadia.

Nossa história está vinculada a processos de transformação ocorridos na educação no século XX, que foram intensificados nos últimos anos, a partir da formação de círculos de aprendizagem. Teoria e prática se fazem nos nossos espaços de trabalho.”

Em seguida, apresentavam um calendário de reuniões da equipe, nas quais manifestariam o seu sentir relativamente aos valores enunciados e se decidiria como os vivenciar na prática do projeto de formação iniciado em fevereiro de vinte e três.

O outro documento era o anúncio de um encontro, que viria a ser realizado no final de janeiro de há vinte anos. Podereis partilhá-lo com aqueles que, em 2043, também, desejem empreender caminhos de inovação educacional.

Ficai sabendo que, nesse tempo, havia gente consciente do que seria necessário fazer para que a escola pública fosse, efetivamente, pública. Sob o título “Ciclo Visões, Movimentos e Mudanças em Educação”, o Mauro e a Valéria assim o apresentavam:

“Completar 200 anos de independência inspira aos brasileiros reflexões sobre o momento presente, ponte entre passados contemplados e futuros possíveis. Equívocos, limitações e fragilidades podem assombrar a festa, mas vale reconhecer e provocar potências para valorizar protagonismos, reduzir desigualdades, reconhecer singularidades e abrir espaços para novos percursos.
Em sintonia com esse reconhecimento de potências há quem proponha uma nova construção social de aprendizagem, que tem centro nas práticas pedagógicas, mas que se relaciona com temas como a escolarização, as relações pessoais, a constituição do tecido social e a visão planetária. Essa visão aprofunda a crítica ao que se compreende por educação, e distancia o movimento de inovação de conotações meramente teóricas, metodológicas ou de apropriação tecnológica.

O Ciclo Visões, Movimentos e Mudanças em Educação propõe abrir caminhos, principiando nos sujeitos – seus desejos, suas histórias, seus talentos – e estimulando sua ação junto a equipes, organizações e movimentos que possam desdobrar esses potenciais em acontecimentos inaugurantes e instituintes.”

O documento impresso, que guardei, até hoje, informava que as inscrições poderiam ser feitas a partir no site do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.

Nada pior que um velho para complicar a vida dos jovens e comprometer a concretização dos seus projetos. Por isso, me retirei de cena, seguro de que a mudança necessária estava a começar.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXVI)

Itatiaia, 15 de janeiro de 2043

Netos queridos, no fundo, bem lá no fundo do baú das velharias, achei uma pen drive contendo um vídeo do início dos anos noventa, no qual o Professor Agostinho conversava com uma jornalista.

Não ouso transcrever o diálogo. Sugiro que o escuteis, pois ainda o podereis encontrar na velha Internet:

https://www.youtube.com/watch?v=g7JmgJ6wQKk

Mestre Agostinho fazia a crítica do modelo “prussiano-bancário”, da sala de aula, onde, naquela época, o docente ainda dava respostas sem escutar perguntas. Questionava a prova de acesso ao “ensino superior”. Pelo caminho da crítica social, falava de cultura popular. E do porquê de não ter CPF (número de contribuinte, em Portugal).

A entrevista foi feita em 1990. Mas, Agostinho já assim falava (e agia), em Itatiaia, na década de 40.

E esta cartinha ficará por aqui, com recomendação de “trabalho de casa”. Estudai o Mestre Agostinho da Silva. Porque, em Educação, não há nada de novo debaixo do Sol.

Sede felizes!

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXV)

Macaé, 14 de janeiro de 2043

Há pouco mais de cinquenta anos, mantive uma grande amizade com um eminente sociólogo, que um câncer, prematuramente, levou do mundo dos vivos. Enquanto um resto de saúde lhe permitiu partilhar com este seu aprendiz, o arquivo das teses que tinha orientado, eu aproveitava todos os momentos livres de canseiras para as ler. Até que, lendo uma tese sobre o flagelo da fome, dei comigo a rir do conteúdo.

O meu amigo perguntou por que eu ria. Respondi que aquela tese era mentira. Que o seu autor nunca fizera observação participante.

“Por que dizes isso?” – perguntou.

“Eu sei da tua competência. Talvez a tua confiança no doutorando te terá traído. Esta tese não passa de um exercício de citações do Josué e de outros teóricos, não passa de teorização de teorias. Esse doutor não sabe o que é a fome, nem qual a sua origem.”

“Não estou a entender”.

“Querido amigo, no tempo em que o doutorando elaborou a sua tese, na “Ilha dos Tigres”, nesse território, que deveria ser o locus de pesquisa, não entrava polícia, nem ambulância, quanto mais um pesquisador! Se ousasse entrar, poderia sair… na horizontal”.

Ao meu amigo, pareceu que eu estava a exagerar. Perguntou:

“Como sabes que o doutorando não poderia entrar?”

“Porque eu nasci e vivi nesse cortiço. Sei o que é a “Ilha dos Tigres”.”

O meu amigo conhecera o vosso avô nos bancos da universidade. Não lhe passava pela cabeça que eu tivesse sido criança e jovem morador num cortiço. Naquele tempo, um favelado nunca chegaria à universidade. Quanto muito, faria um curso técnico-profissional, um daqueles que eu também fiz, antes de decidir ser professor: o curso de montador eletricista.

O dinheiro que ganhei fazendo instalações de baixa tensão e dando “explicações” a jovens que a escola não conseguia ensinar, me permitiu continuar estudos.

Quando já era professor há quase meio século, pela milésima vez, me perguntaram:

“Por que é que você é contra a aula?”

“Não sou contra nada. Sou a favor de tudo o que seja útil, que ajude a aprender. Aula sempre haverá, enquanto houver aprendizes. Quando o discípulo está pronto, eis que surge o mestre, e a aula acontece. Mas, não em sala de aula.”

“Por que não?”

“Porque quase nada se aprende, ouvindo aula. E porque o instrucionismo perdeu sentido, fundamentação. “

“E o método que você usa tem fundamento?”

“Não é um método. É uma nova construção social de aprendizagem.”

“E qual é a fundamentação disso?”

Dei-lhe uma longa lista de autores. Perguntou:

“E o que é que eles dizem nos livros?”

“Vá lê-los e ficará a saber.”

Leu. Produziu power point. Vendeu formação. E continuou dando aula… em sala de aula.

O caminho para a mudança e inovação estava entupido de teoricistas e PhD made in USA, que liam tratados, colavam na memória as mesmas lenga-lengas dos seus professores e as recitavam. Denunciavam a mercantilização da escola pública e a barbárie instituída, enquanto as suas práticas contribuíam para a perenização de um modelo educacional que reproduzia a barbárie.

Essa praga se prolongou até meados dos anos trinta. Depois, ingloriamente, sumiu. As suas “produções” tiveram o destino que mereciam: o balde do lixo da História da Educação.

Tinha sido grande o dano causado pelos dadores de aula, que enriqueciam à custa da curiosidade de professores famintos de novidades. Ascendiam a lugares de “prestígio” na cadeia hierárquica. Vendiam livros compostos de inúteis citações de citações. Palestravam e assessoravam, enquanto a educação se degradava e a escola fenecia.

Netos queridos, eu sei que custa a crer, mas era essa a triste situação, nos idos de vinte.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXIV)

Mangueiral, 13 de janeiro de 2043

No janeiro de vinte e três, este vosso avô, ainda septuagenário, já sobrevivera à miséria da Ilha dos Tigres. Vira a fome, a sífilis e a ditadura matar os seus companheiros de infância Passara pela guerra nas “colónias” africanas, participara na Revolução dos Cravos, enfim! Decidira ser professor, para vingar os excluídos. Mas, como Freire havia dito que a Educação era ato de Amor e de Coragem, me armei da coragem possível e fiquei na Educação por Amor.

Nos idos de vinte, já levava mais de meio século de participação em projetos efetivamente inovadores. Quando me chamaram para a Mesa de Abertura da primeira CONANE, foi enorme a emoção. Deitando os olhos pelo auditório, só vi caras conhecidas, educadores que haviam escutado o apelo dos Românticos Conspiradores e se envolviam em novos projetos, tendo por referência o Terceiro Manifesto pela Educação.

O ministério se fez representar no evento pela minha amiga Jacqueline Moll, que recebeu das mãos das crianças o documento e o assumiu. Ele fazia todo o sentido no trabalho que a Jacqueline vinha realizando, no contexto do programa “Mais Educação”. Com a sua coordenação, o projeto de educação em tempo integral se expandia e começava a dar frutos.

No GT da inovação do ministro Janine, ajudei a Helena no levantamento de 178 projetos com potencial inovador. Residente em Brasília, coordenei uma pesquisa, viando fazer o “ponto de situação” da educação no Distrito Federal. A partir das conclusões desse estudo, experimentalmente, o secretário Júlio criou a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá. E, com o secretário Rafael, ajudei a instalar uma rede de comunidades de aprendizagem. Mas, eis que chegaram tempos sombrios.

Tempos áureos só regressariam no janeiro de vinte e três. Lamentavelmente, os políticos nada tinham aprendido com a pandemia e a desgovernação. Ao interregno de quatro anos de política educacional retrógrada sucedeu uma escolha errada, a “sobralização” do MEC.

Eu pensava que já tinha visto tudo… Até que assisti à devassa e depredação do património de todos e concluí que aquilo que conseguira concretizar – processos de humanização da escola pública – era insignificante. Porque, entre os vândalos protagonistas desse drama, havia professores do básico e universitários, alunos, conselheiros tutelares…

Quanta vergonha senti! Que péssimo exemplo dávamos às novas gerações. A Ponte e o Âncora me haviam ensinado que, individualmente, eu deveria ser responsável pelos atos do meu coletivo. A minha cultura pessoal e profissional me fazia sentir corresponsável pelos tresloucados atos dos meus companheiros de profissão.

A esse sentimento se juntava a preocupação, por ver que o ministério insistia em práticas reprodutoras de bonsais humanos. E me remeti para o fazer “a minha parte”.

Nos bastidores, ajudei quanto pude os amigos Miguel e Brandão a apoiar a Jacqueline num dos mais importantes programas que o ministério havia lançado – o “Mais Educação”. Com eles, aprendi o dom da simplicidade e da competência. Por isso, não hesitei em declarar o meu apoio à indicação da minha amiga Jaqueline Moll para a coordenação da Secretaria de Educação Básica do MEC. Um abaixo-assinado decorria, para a recolocar num lugar que era seu por direito.

Nem tudo eram decepções, nesse janeiro de há vinte anos. A par do aventureirismo “sobralista”, gente responsável agia, reagia. Nas redes sociais se faziam ouvir as vozes do Brasil da Educação de que o Brasil precisaria, para que, numa escola cidadã, o lema “liberdade para sempre” se afirmasse.

 

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXIII)

Ceilândia, 12 de janeiro de 2043

Quando remexo no baú das velharias, deparo com notícias que os meus olhos desejariam não ler. Como esta, colhida num jornal do janeiro de há vinte anos:

“Menino de seis anos atira, dentro de sala de aula, e atinge professora.

O indivíduo é um aluno de seis anos, que está sob custódia policial” – dizia o chefe de polícia, acrescentando “não se tratar de um tiro acidental”.

A polícia informou que a vítima, uma professora de cerca de 30 anos, corria risco de vida.

Tiroteios em escolas devastavam os EUA. No Texas, dezenove crianças e dois professores tinham sido assassinados por um atirador de dezoito anos. Segundo o Gun Violence Archive, em 2022, teria havido cerca de 44 mil mortes relacionadas a armas de fogo nos EUA. Quase metade das mortes tinham sido assassinatos, acidentes e legítima defesa. A outra metade, suicídios.

Uma sociedade doente recusava identificar a principal fonte de violência física e simbólica. E injetava Ritalina nas crianças, introduzia paliativos neoliberais nas escolas, comprava pacotes de habilidades emocionais.

Entrando o “sistema” na sua fase delirante, quando já não sabia como lidar com vândalos, como os da depredação de Brasília, surgiam empresas especializadas em “acalmar alunos”. Reparai no teor de um anúncio (entre muitos), que a Internet dos idos de vinte nos fazia chegar:

“Também sentes que a energia com que os alunos voltam do intervalo ou da pausa do almoço é tantaaaaa que fica complicado acalmá-los?

Eles entram na sala e é começar a chamar a atenção, a impedir que vão para certas áreas da sala, é interferir nos minis conflitos que os acompanham…e às vezes a coisa só acaba com 2 gritos e um ambiente tenso!

Então, hoje vamos transformar-te numa SUPER…. Super?

Sim, é que esta estratégia para trazer a Calma vai fazer de ti a super Professora, (e super Mãe, Super Tia, Super Madrinha, Super Avó). Estás a perceber a ideia?

Podes usar na rotina, quando voltam do intervalo, para irem acalmando ao observar as bolinhas.

O melhor é que tem Bónus porque vai ajudar os miúdos a: acalmar e serenar quando estão mais agitados, diminuir birras e momentos de emoções desreguladas, aliviar stress e ansiedade, aliviar momentos de assoberbamento sensorial, ocupar momentos de tédio.”

Essa empresa teria lucro assegurado, dado que as emoções desreguladas e o tédio eram comuns nas salas de aula. Procurei ignorar esses e outros disparates, e me lancei num último empreendimento.

Convidei educadores para a criação da primeira comunidade de aprendizagem, recuperando solidariedades perdidas, tentando re-ligare o que havia sido desunido pela Escola cartesiana. Tentando juntar a Família com a Sociedade e a Escola. Tentando juntar uma educação humanizadora com a arte e cultura, e com a saúde pública e ambiente. Tentando efetivar um diálogo respeitoso entre as escolas, o poder público e a universidade.

Na consideração dos quatro pilares do Dellors, os professores reaprenderam a conhecer, adquirindo hábitos de pesquisa, emancipando-se de práticas instrucionistas de sala de aula. Aprenderam a refazer o seu estatuto profissional,

reelaborando a sua cultura pessoal. Aprenderam a ser professores-tutores, sujeitos de aprendizagem, aprendizes de utopias realizáveis.

O quarto pilar foi o mais difícil de erguer pois, nem dentro da casa comum, foi fácil aprender a… conviver. Na Brasília de 22, a casa comum fora depredada. O exercício de uma “liberdade para sempre”, lema do novo governo, teria de passar pela concretização do sonho de Anísio, o de uma escola pública berço de cidadania.

 

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