Porto Seguro, 4 de fevereiro de 2043
No fundo do baú das velharias repousava um caderno onde anotava o teor de “conversas vadias” (à semelhança das conversas do Mestre Agostinho). É de 2018 este excerto:
“Do muito que já li sobre a Ponte nunca li que pudessem ser eles a fazer o próprio recrutamento de professores. Recorriam ao que muitas escolas recorreram até 2005. Uma simples turma de currículo alternativo na altura, permitia a um conselho de turma inteiro ficar na escola enquanto o projeto durasse. Agora nada disso é possível… as escolas até tentam, por vezes, mas nunca é aprovado”.
Talvez não por acaso, encontrei esse pedaço de conversa, quando, no fevereiro de há vinte anos, fui até um dos primeiros povoados onde aportaram os portugueses de quinhentos. “Povoados” porque já por lá havia gente e nome de lugar, embora os intrépidos viajantes dessem nova designação ao arraial – Trancoso – denominação idêntica à de uma vila do interior do Portugal, terra de onde haviam partido. A Caina e outros educadores da região não abdicavam de fazer dos sonhos realidade. A iniciativa da Zilda me fizera ali chegar. A generosidade da Morena me dera guarida e alimento.
Conversei com o Julian, expliquei-lhe o projeto e refletimos sobre a sua autonomia e sustentabilidade financeira. Até então, muitas “alternativas” tinham sido concebidas. Porém, essas alternativas tinham assumido a forma de cooperativas, associações e outros frágeis arcaboiços de escola. Por escassez de recursos, assisti ao fim de belos projetos e à acomodação de outros aos ditames de uma administração educacional autoritária. Vi os mais nobres educadores que conheci acabarem no divã do psiquiatra. E centenas de projetos sumirem sem deixar rasto.
Havia quem sonhasse com a humanização da escola e fosse impedido de transformar o sonho em realidade.
Produzir mudança e inovação equivalia a empreender um caminho semeado de burocráticas ciladas e de outros obstáculos difíceis de transpor. Tudo porque o primeiro requisito de sustentabilidade de um projeto seria a assunção de autonomia.
A Ponte fora pioneira nesse campo. Ao cabo de quase trinta anos de porfiados esforços, logrou firmar com o estado português um contrato de autonomia. para ser autônoma, a escola extinguiu a função de diretor – que padecia do dever de obediência hierárquica – e entregou a direção do projeto à comunidade.
Quatro anos decorridos sobre a assinatura do contrato, o Decreto-Lei 75/2008 abriu novo ciclo na gestão das escolas portuguesas. O gestor do “agrupamento de escolas” (absurda criação normativa) passou a ser, novamente, um diretor. O novo velho modelo amplificou a distância entre professores e gestores, e fomentou a funcionarização dos docentes.
No texto do contrato de 2004 estava inscrito o direito à seleção de professores. Contudo, o decreto de 2008 produziu “retroatividade”. E a estabilidade da equipe se perdeu por via da chegada de professores colocados em concurso geral, que reintroduziram no projeto práticas instrucionistas.
De nada valeu o comentário do Afonso:
“A formatação excessiva da gestão das escolas, expressa na regulamentação e na prática da burocracia da administração educacional, têm constituído um fator poderoso de ineficácia, de ineficiência, e de inibição da emergência de lideranças escolares de elevado potencial de inovação.”
No 11 de fevereiro de há vinte anos, educadores conscientes dos riscos a enfrentar na profunda transformação institucional que se propunham realizar entregaram à administração educacional uma minuta de Termo de Autonomia.
Por: José Pacheco
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