Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCLXX)

Brasília, 10 de março de 2043

Naquele tempo, os inspetores do ministério eram presença assídua na Escola da Ponte. E as homéricas discussões sempre terminavam com a inspetoral ordem: 

“O senhor professor tem de voltar para a sua sala de aula!”

E eu respondia com a sacramentada pergunta:

“Por que terei de voltar para a sala de aula?”

“Porque eu sou seu superior hierárquico, represento o ministério da educação e você é funcionário do ministério”

Nunca me deixei “funcionarizar”. Com o devido respeito a quem era “superior”, fazia perguntas e praticava desobediência civil:

“Se o Senhor Inspetor não der resposta às minhas perguntas, não obedecerei.”

Nunca cedi a imposições sem fundamento. Porque, nos idos de setenta, eu adotara toda a complexa parafernália do Celestin e da Elise Freinet: os ficheiros autocorretivos, a assembleia dos alunos, a correspondência escolar, a aula-passeio, a imprensa, a classe cooperativa…

E o curioso, que sempre fui, quis saber por que razão Freinet quase não “dava aula”. Fui até Paris, ao encontro dos seus discípulos. 

Foi, sobretudo, devido a uma “deficiência” que Freinet se libertou de atavismos. Durante a Primeira Guerra Mundial, fora ferido nos pulmões. Compreendeu que os seus problemas respiratórios não lhe permitiriam “dar aula”. Por lhe ser difícil respirar dentro da sala, foi com os alunos para fora dela. Arejou a sua escola e provocou correntes de ar novo em muitas outras. 

Imaginemos o que aconteceria, se muitos professores padecessem de problemas pulmonares, ou não pudessem utilizar as cordas vocais! – por razões que a razão desconhece, a sala de aula passaria a ser mero objeto de museu da pedagogia. 

Mas, um século decorrido sobre a origem da “Escola Moderna”, a quase totalidade dos professores possuía pulmões de aço, que lhes permitiam falar alto (e até gritar) em sala de aula.

Pouco antes da realização da quinta CONANE, dois dos maiores teóricos desse tempo – Pedro Demo e António Nóvoa – afirmaram a necessidade de acabar com o trabalho em sala de aula. 

Os mestres Pedro e o António (escrevi “mestres”, porque “doutor” qualquer um poderia ser) eram para mim referências de honestidade intelectual. Para além de outras virtudes e defeitos (de perto, ninguém é normal) eles encarnavam a coerência freiriana.

Esses bons amigos reuniam duas qualidades que eu apreciava: um rigor científico a toda a prova e uma ação tão exigente como compassiva, por se saberem professores entre professores. 

Para eles, a teoria e a ação educativas eram duas vertentes indissociáveis. Na exploração de seus temas de estudo, faziam uso de instrumentos teóricos heterogêneos, em busca de conclusões que não estivessem evidentes na superfície dos fatos. Porque o “evidente” quase sempre mentia. Não era assim, António?

No tempo da Quinta CONANE, os projetos que eu acompanhava tinham ido muito além do “deixar de dar aula”. Eram esboços de uma nova construção social. E, numa conferência, que eu ajudei a criar, esperava encontrar exemplos de inovação. 

Embora pudesse utilizar outros indicadores, parâmetros e critérios de avaliação de projetos, o critério-base de aferição seria a presença, ou ausência, do dispositivo central do instrucionismo – a sala de aula. 

Saturado de embustes e paliativos instrucionistas, na véspera da minha partida para Brasília, era enorme a expectativa. Levava na bagagem muita esperança – a V CONANE dizia ser a “CONANE da Esperança” – e uma interrogação: iria encontrar “alternativas” e exemplos de “nova educação”? 

Assisti às apresentações dos projetos selecionados. Vos direi o que vi e ouvi.

 

Por: José Pacheco

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