Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCII)

Serra Grande, 12 de abril de 2043

Netos queridos, desde 2040, fui registrando reflexões sob a forma de cartas. Vejo, agora, que redigi um enunciado de perplexidades. As missivas falaram de escolas que, nos idos de vinte, anunciavam novos modos de aprender. Mas, durante demasiado tempo, quase todas se mantiveram ancoradas no modelo de ensinar, que denunciavam, por força de circunstâncias desfavoráveis.

A herança totalitária do Vargas, que liquidou os intentos da Nise, já ia longe, mas o autoritarismo da administração educacional manifestava-se em sutis modos de controle. O tempo de ditadura, que exilara Freire e Darcy, já ia longe, mas uma hierarquia mal disfarçada fazia estragos. E impedia que Freire e Darcy, efetivamente, regressassem do exílio. Bonsais políticos e burocratas se aliaram a pedagogos fariseus em tentativas de melhorar o que não poderia ser melhorado.      

As cartinhas foram portadoras de boas e más notícias, mensageiras de mais um propósito: o de dar a conhecer extraordinários educadores talvez ignorados pelos educadores “normais” (era o nome que lhes dava o meu amigo Bernard).  A divulgação de suas vidas e obras foi produto de impulso, a reação a medidas políticas, que significaram retrocesso, como a da “sobralização” ministerial de vinte e três.

Como diria o meu amigo Batata, quando a retórica era contraditória com as tendências práticas, havia espaço para desenvolver práticas que não eram as oficialmente induzidas, mas que poderiam ser justificadas e legitimadas pela retórica. 

Havia um espaço de legitimação para desenvolver outro tipo de práticas, mesmo que estas, muito provavelmente, não tivessem muito nem pouco financiamento, que esse ia inteirinho para empresas produtoras de paliativos. Havia espaço para centrar a formação no chão da escola, o que significava ligar a formação à vida e não para aceitar, passivamente, que a formação aparecesse quando se estava “sentado na escola”, ou, mais especificamente, “sentado na turma”.

Em meados da década de 1970, coube-me coordenar um programa de formação contínua de professores. Tratava-se de um programa ministerial com o intuito de “reciclagem dos professores” (como então se designava a formação continuada) com vista à “introdução dos novos programas para o ensino”. Mais por intuição do que por referência a um quadro teórico, fiz do primeiro momento um encontro de escuta, em grupo. Fora eleito pelos professores da região onde trabalhava e era com eles (e por eles) que qualquer projeto poderia ter lugar. 

Passei a trabalhar, fora de tempo letivo, com uma equipa de professores. Procedemos a um levantamento de recursos e encontramos uma Biblioteca Pedagógica fechada numa arrecadação da Delegação Escolar. Uma biblioteca muito bem apetrechada, mas jamais utilizada pelos professores. 

Retirado o pó, inventariados os livros, estes passaram a circular pelas escolas. O ritmo de requisições intensificou-se. As solicitações das escolas, também, e não tínhamos descanso. 

Fruto da dinâmica criada, não tardou a ser publicado o primeiro número do “Projeto”, boletim do Centro de Documentação Pedagógica. O texto de abertura tinha um título sugestivo:

“O que foi e será a formação contínua dos professores”. 

Estávamos em 1978!

Em 2023, os livros da biblioteca que o MEC mandara para as escolas de Maricá começaram a ser lidos. Professores excepcionais voltaram a retirar do pó do esquecimento obras fundamentais de apoio à mudança e à inovação, que se avizinhavam.

Como diria o Ariano, como sabiam pouco, faziam o pouco que lhe cabia, dando-se por inteiro.

 

Por: José Pacheco

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