Maraú, 21 de abril de 2043
Tenho contado muitas estórias. Chegou a vez de contar a história, de rever a história oficial brasileira, de analisar a versão dos vencedores, manipuladora de fatos de inconveniente revelação. Numa abordagem de amador – que os especialistas se ocupem de as corrigir – trago à colação fatos e figuras talvez adulteradas ao longo dos anos.
O vosso avô foi ao fundo do baú das velharias e recuperou estórias que fizeram história. Como especialista em fofoca, peregrinou por lugares de estranhos eventos. Escutou bisnetos de protagonistas, bisbilhotou deturpados arquivos de velhas bibliotecas. Adentrou o mistério do local do túmulo do Tiradentes. Foi ao lugar onde uma batalha “inventada” dizimou o que restava de dois exércitos de negros com direito a alforria. E, desenterrando Canudos, ressuscitou o Antônio.
Ele era professor de aritmética, português, geografia, francês, latim e retirava prazer: do estudo das lendas populares da idade média.
Não conseguiu ficar muito tempo nas escolas de fazenda, ao serviço dos barões. Abandonou o ofício de professor, para peregrinar pelo sertão e se expor a conspirações e calúnias.
Tarde se iniciou na arte de ensinar e escassos foram os anos em que se dedicou a uma docência precária e mal remunerada. Buscou sustento em profissões de mais generosos proventos. Foi escrivão, solicitador e até advogado sem diploma. Até ao dia em que se decidiu pela errância no interior do Ceará, restaurando e construindo capelas, igrejas, cemitérios.
Atento às pregações do padre Ibiapina, estudava os textos sagrados e espalhava o Evangelho entre o povo humilde, de quem escutava preces e a quem dava consolação. Daí o cognome que lhe conferiram, o de Conselheiro.
Teria Antônio consciência das invejas, da ira que o seu agir despertava junto de eclesiásticos e latifundiários? Os poderosos não perdoavam a fuga de súbditos, que o seguiram e oe ajudaram a fundar o arraial do Bom Jesus. E, de imediato, o acusaram de assassino.
Provada a sua inocência, o seu prestígio cresceu entre a massa de deserdados. Essa humilde e castigada gente projetava na pessoa do Antônio a esperança de libertação de um cativeiro de séculos, às mãos de barões e coronéis.
Aquela fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris foi anunciada como a terra prometida aos miseráveis, às prostitutas e aos jagunços, que semeavam o terror no sertão da Bahia. E era tal a sua fé, que as prostitutas viraram mulheres de virtude. E os jagunços se transformaram em paladinos da justiça.
Antônio deu o nome de Belo Monte ao povoado que viria a ser conhecido por Canudos. Franciscano pedreiro, que era, como o santo de Assis, que também foi pedreiro construtor e reconstrutor de templos, iniciou a construção de uma igreja, congregando almas dispersas, banindo o uso do vil metal, instituindo a propriedade comum.
Não lhe perdoaram a utopia de um Brasil sem prostituição física ou espiritual, sem corrupção. O genocídio perpetrado por um exército manipulado por políticos de baixa estirpe matou o admirável sonho de uma sociedade justa. Os poderosos do século XIX negaram a quinze mil seres humanos o direito a uma vida digna.
Decorrido quase um século após a morte do Conselheiro, Agostinho da Silva evocaria a sua memória:
“Temos de reorganizar todo o sistema educacional com o espírito de descobrimento do século XIV e com o espírito que foi criativo em Canudos.”
A crença na possibilidade de remissão de velhos pecados alimentou novas práticas de comunidade. Atravessado um século de ignomínia, o exemplo do Conselheiro nos ajudava a acreditar.
Por: José Pacheco
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