Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXVI)

Conceição de Tavira, 26 de abril de 2043

Vinte anos se foram, mas ainda não se me escapou da memória imagens e sensações do “25 de Abril” de há vinte anos.

Pelo coro de vozes entoando o hino nacional português, portugueses seriam poucos, aqueles que assistiam ao concerto comemorativo da “Revolução dos Cravos”. Tavira era um destino turístico muito apreciado pelos europeus e eles enchiam o antigo Mercado da Ribeira, apreciando o espetáculo.

Um dos estrangeiros, porém, sentiu algo para além do senso estético. Ludi sentiu um súbito estremecimento, que vinha do fundo da sua ascendência. Ludi tivera progênie preta. 

Um doloroso frémito rompeu, quando a apresentadora do concerto leu versos de uma das músicas tocadas pela banda: a “Mãe Preta”.

“Pele encarquilhada carapinha branca

Gandôla de renda caindo na anca

Embalando o berço do filho do sinhô

Que há pouco tempo a sinhá ganhou

Era assim que Mãe Preta fazia

Criava todo o branco com muita alegria

Porém, lá na sanzala o seu pretinho apanhava

Mãe Preta mais uma lágrima enxugava

Enquanto a chibata batia no Seu Amor

Mãe Preta embalava o filho branco do sinhô”

A canção fazia referência à lenda gaúcha da “Mãe Preta”, que, segundo a lenda, teria dado origem à cidade de Passo Fundo. Caco Velho fizera a letra e Piratini contribuíra com a música.

Ao longo do tempo, a música se manteve intocável, mas a letra fora proibida pela censura de um Portugal sob o jugo de uma ditadura. Considerada subversiva, um poeta português a substituiu por uma versão cantada pela Amália, sem referência ao sinhô e à chibata:

“Eu sei, meu amor

Que nem chegaste a partir

Pois tudo, em meu redor

Me diz que estás sempre comigo.”

Quatro anos após as portas que abril abriu, Amália voltaria a gravar a canção na versão original, com a inspirada letra de Caco Velho. Era um fado que agregava lamento; saudade e dois modos de sentir tristeza. Saudade de alguém num longínquo barco, que era negro, e o lamento de mãe, embalando o filho do sinhô, enquanto o seu filho sofria golpes de chibata.

Os versos da primitiva canção sintetizam o que Darcy denunciou:

“O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.” 

Ludi teria, também, ascendência indígena, o que contribuiu para agravar, tornar mais profunda a dor de alma. 

No início de três séculos de ignomínia, Manuel da Nóbrega, autor do primeiro texto em prosa escrito no Brasil, se penitenciava, relativamente ao genocídio perpetrado contra os povos originários. 

O Padre Serafim Leite afirmou que o seu “Diálogo sobre a conversão do gentio” fora a principal obra em prosa do século XVI brasileiro. Duras críticas Manuel fez dos costumes, quando se apercebia de que até mesmo muitos religiosos incorriam nos mesmos erros dos leigos colonizadores: 

“Omnes commixti sunt inter gentes et didicerunt opera eorum. 

E apelava ao rei, para que mandasse inquisidores ou comissários, para libertar os escravos. A Inquisição não o fez, e semeou a morte em nome de Deus. Quanto ao rei, quando chegou, não agiu contra uma prática vil.

Os gentios que os jesuítas protegeram acabaram dizimados pelas armas do homem branco e pelas maleitas que por toda a parte espalhou. Entre a sífilis e a varíola, milhões de vidas se perderam, muitas comunidades foram exterminadas. 

Nos idos de vinte, nem seria preciso introduzir a gripe dentro da tribo dos Goitacazes, para que a sua cultura fosse extinta. Bastaria levar para a comunidade uma seita religiosa, a televisão, a Internet e a Escola que ainda tínhamos, em tempos sombrios. 

 

Por: José Pacheco

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