Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXIII)

Esgueira, 3 de maio de 2043

Já vos disse que, quando decidi ser professor, eu possuía conhecimentos de eletrotecnia, mas nada sabia de pedagogia. Eu poderia vir a ser engenheiro, mas não saberia ser professor. Eu só sabia dar aula. Então, na última das viagens de trabalho a Portugal, partilhei a minha formação experiencial. Foi assim…  

No início dos anos setenta, a primeira crise profissional se me acometeu. Dava boas aulas, bem planejadas, com um bom suporte material, muita motivação, plantava hortas, praticava yoga na sala de aula.

Mas havia sempre alunos que não aprendiam e… reprovavam. A Constituição dizia ser a educação um direito de todos, e eu não conseguia assegurar esse direito a todos. Instalou-se uma crise moral, que me levou a optar entre dois caminhos: ou mudava a minha forma de ensinar, de modo que todos aprendessem, ou iria embora da profissão.

Busquei auxílio. Fui ajudado pela Montessori, que me emprestou os seus materiais. O Mounier falou-me de ensino personalizado e o Dottrens ensinou-me a individualização. O Celestin e a Elise Freinet ajudaram-me com os ficheiros autocorretivos, a classe cooperativa, a imprensa, a Assembleia…  

As práticas de Kilpatrick, os centros de interesse do Decroly, as taxonomias do Bloom, o Dewey, o Piaget, o Vygotsky, o Rogers, o Freire e mais um cortejo de amigos veio em meu auxílio. 

A minha sala de aula converteu-se numa autêntica Árvore de Natal, toda enfeitada de projetos.

Em meados de setenta, foi-me entregue uma turma de alunos reprovados, por não saberem ler. Tinham sido ensinados do modo que eu sabia ensinar. Se eu continuasse a ensiná-los dentro da mesma metodologia., sabendo que eles não iriam aprender, eu não seria professor, seria um crápula. E instalou-se a segunda das crises. 

Para a ultrapassar, eu deveria aprender a ensinar a ler. Com a Magda e a Emília, aprendi a ser alfabetizador. E os jovens analfabetos por seis anos aprenderam a ler em três meses. 

Porém, continuava a haver alunos que não aprendiam. Sobreveio nova crise. 

O sistema de ensinagem era controlador e astuto. Tendo sido criado na Prússia militar e na Inglaterra da Primeira Revolução Industrial, mantinha caraterísticas herdadas de valores, visão de mundo e necessidades sociais dos séculos XVIII e XIX – era hierárquico, autoritário, hegemônico, excludente. 

Impusera um padrão de tempo único. O ano letivo seria segmentado em parcelas de tempo considerado suficiente para o adestramento cognitivo de crianças e jovens. “Flexibilizei a gestão do tempo. Deixou de ser segmentado, passou a ser o tempo de cada qual e dos ciclos de vida de cada comunidade. Nas comunidades de aprendizagem criadas nos idos de vinte, foram erradicadas aberrações como, por exemplo, “carga horária”, “semestre escolar”, “ano letivo”, mas, ainda havia alunos que não aprendiam.

Quando estava prestes a completar setenta anos, uma terceira crise me assaltou. Desta vez, muito mais do que moral, esta era de natureza ética. Concluí que, dentro do sistema de ensinagem, jamais o direito à educação seria um direito de todos. Que não deveria tentar melhorar o sistema de ensino. Urgia transformar uma construção social de ensinagem concebida há dois séculos numa nova construção social, mas de aprendizagem.

E outros amigos vieram auxiliar-nos: Freire, Demo, Agostinho, Nise, Nilde, Lauro, Papert, Maturana, Morin, Nóvoa… Uma nova construção social de aprendizagem, emergente da terceira das crises contribuiria para formar o cidadão democrático, o ser humano solidário, para (finalmente!) a todos assegurar o direito à educação. 

 

Por: José Pacheco

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