Cacela Velha, 27 de abril de 2043
Netos queridos, porque me perguntastes quem era o Manuel da cartinha de ontem, aproveito para dar a conhecer um aluno “especial”, que, no seu tempo, não foi “incluído”, mas se “incluiu”.
Manuel da Nóbrega foi um missionário jesuíta português, integrante da primeira missão jesuíta mandada para a América. Sem que o soubesse, talvez tivesse sido o primeiro aluno “especial” de que reza a história da educação, num tempo em que a Conferência de Salamanca nem sequer era sonhada.
Na sua prova para Lente da Universidade, ficou aprovado na prova escrita, mas a sua gaguez impediu que fosse nomeado professor universitário. Na segunda tentativa, o auditório apercebeu-se do seu problema na fala, mas, mais uma vez, não obteve a cátedra por causa da sua gagueira. Se a Universidade do século XVI, ainda tão medieval quanto a do século XXI, perdeu um professor por gaguez, o Brasil ganhou um fantástico educador.
Na pequena aldeia jesuíta, além da Serra do Mar, que viria a tornar-se a maior cidade da América do Sul, desenvolveu uma intensa campanha contra a antropofagia existente entre os nativos. Dizia numa das suas cartas:
“Andam todos em discórdia, comem-se uns aos outros.”
Mal sabia o Manuel que a vil discórdia se manteria por séculos. E que, se combateu a exploração dos povos originários pelo homem branco, no século XVI, bem mais difícil seria, suponho, a sua missão de combate à exploração, nos idos de vinte.
No tempo em que viveu, Manuel não dispunha de meios que a educação do século XXI propiciava. O Brasil já dispunha de produção científica e práticas que provavam a possibilidade de uma escola que a todos acolhesse e a todos conferisse o direito à educação, a condições de realização pessoal e social, base da construção de uma sociedade solidária, justa e sustentável.
O exemplo das Missões, que os seus irmãos jesuítas edificaram, renasceu sob a forma do que poderíamos chamar “comunidades”. As “reduções” do sul, que a ambição dos homens destruiu, eram autossuficientes, dispunham de autonomia econômica e cultural e funcionavam num regime comunitário. Era por aí que ia a intenção de educadores, que adequaram ao século XXI propostas de antanho, embora a velha educação prevalecesse travestida de “nova”, no discurso de economistas, de jornalistas e de “especialistas”.
Vinte anos atrás, a ignorância pontificava numa revista brasileira de grande tiragem, onde “sapateiros subiam acima das chinelas”, ao serviço de ocultos interesses, pervertendo a memória de Freire, corrompendo o seu legado, apelando ao regresso a um passado de onde a educação brasileira nunca saíra.
Talvez o tempo desses “especialistas” estivesse a chegar ao fim, porque já o Fernando nos dizia que “o sonho é ver as formas invisíveis / da distância imprecisa, e, com sensíveis / movimentos da esperança e da vontade / buscar na linha fria do horizonte.”
Nesse tempo, poderiam chamar-me utópico, que não me ofendia, pois dava a conhecer projetos que provavam a vitalidade da componente saudável de um sistema doente. Projeto que abriam caminhos e apresentavam reivindicações: a dignidade de um estatuto de autonomia estipulado no artigo 15 da LDBEN; a prática de educação integral; uma universidade que se distanciasse de práticas de formação incompatíveis com necessidades educacionais do século XXI; o reconhecimento público da excelente qualidade de muitos profissionais da educação; o reconhecimento de que fosse possível que a aprendizagem caminhasse junto com o desenvolvimento do pensar, da formação do caráter e do exercício da cidadania.
Por: José Pacheco