Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCLII)

Paços de Brandão, 1 de junho de 2043 

No final de maio de há vinte anos, era por demais evidente o estertor do velhíssimo modelo de ensinagem. Sob a forma de “aulas invertidas” e “ensinos híbridos”, a moribunda herança da Prússia Militar do século XVIII recebia os últimos alentos e arrastava consigo um sem-fim de maleitas. 

Um estudo divulgado nesse mês apontava que um em cada três professores de crianças sofria de Burnout. A pesquisa avaliou cerca de quatrocentos professores de colégios públicos e privados. A maioria apresentava prevalência de sintomas similares: o desejo de se afastar do trabalho e pensamentos negativos sobre sua atuação.

Os jornais assim descreviam a situação:

“Um terço dos professores da educação básica sofria da síndrome de Burnout. Salários defasados, violência nas escolas e pressão por resultados estão entre os fatores que contribuem para a aumentar o estresse no exercício da docência.

Professor lida com violência física e verbal na escola, falta de estrutura, sofre pressão da gestão escolar e da exigência dos pais.”

O esgotamento da Mafalda estava atrelado a fatores como a pressão psicológica por parte da gestão e dos pais, sobrecarga de “papelada” e assédio moral. A escola a demitiu, quando ela voltou de licença, por questões de… saúde mental.

Apodrecendo aos poucos e provocando vítimas, o “sistema” resistia. Lembrei-me de uns versos do Miguel:

“Não sei quantos seremos, mas que importa?!

Um só que fosse, e já valia a pena.

Aqui, no mundo, alguém que se condena

A não ser conivente

Na farsa do presente

(…) 

E o que não presta é isto, esta mentira quotidiana.

Esta comédia desumana e triste,

Que cobre de soturna maldição

A própria indignação que lhe resiste.”

Dando largas à indignação, chegara a hora de colocar um ponto final nessa “comédia desumana e triste”. Suave e pacientemente, contudo firme e definitivamente, partindo da denúncia para o anúncio. mostrando possibilidades, ao invés de lamentar obstáculos. 

Estávamos em 2023. Os meus amigos Daniel e Sandra me levaram a conversar com professores ávidos de mudança. Ainda os havia! Como, também, havia diretores de agrupamento de toda as idades, mas de uma nova geração.

Num sistema de ensino em decomposição acelerada, o autoritarismo que o caracterizava ia dando lugar a um novo e democrático modo de gerir escolas. Longe ia o tempo em que os inspetores incutiam medo e tratavam os professores como “inferiores”. Como nos idos de setenta…

“Terá de voltar para a sala de aula!”

“Poderá dizer-me porquê, Senhor Inspetor?” 

Assim mesmo, com letra maiúscula e bovinamente sussurrando.

“Porque sou seu superior hierárquico.”

“Mas, Senhor Inspetor, faça o favor de ler o nosso projeto. Verá que não faz sentido ter livro de ponto, nem voltar para a sala de aula.”

“Vós já tendes um projeto pedagógico?”

Era esse o nome que o ministério dava ao que, mais tarde se chamou “projeto educativo”, um documento raramente lido pelos professores. 

“Sim, temos. O Senhor Inspetor quer ver?”

Não quis. Escreveu algumas “considerações” no “Livro de Registo de Visitas da Inspeção” e foi embora. Mostrar a um inspetor uma prática coerente com um projeto escrito era como mostrar a cruz ao diabo.

Durante meio século, a decisão ética plasmada num papel escrito numa máquina de escrever nos livrou do assédio de inspetores e de outros meirinhos. Por isso, há vinte anos, recomendava aos educadores eticamente assumidos que lessem, analisassem o projeto das suas escolas, que identificassem as matrizes axiológicas neles contidas. E que agissem. Que a um ato de Amor juntassem o q.b. de Coragem. 

 

Por: José Pacheco

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