Caçapava do Sul, 9 de julho de 2043
À distância de duas décadas, é-nos possível avaliar a dimensão dos disparates, que contribuíram para protelar o advento de uma autêntica “Escola Pública”. O que importa dizer-vos é que, em Portugal, se vivia uma situação, no mínimo, caricata.
Estava no Brasil, há menos de uma semana, quando recebi a mensagem de uma mãe de um aluno, preocupada com uma informação recebida via telefone (naquele tempo, lideranças tóxicas evitavam dar respostas por escrito).
“Professor, sou a Dora. Venho pedir-lhe ajuda no seguinte:
Inscrevi o meu filho, unicamente, na escola Rafael Bordalo Pinheiro, acreditando que o projeto educativo dessa escola é aquele que quero para ele.
Recebi um telefonema a informar que o Damião não tinha vaga, porque só existe uma turma de francês, e está completa.
Respondi que poderia mudar de língua, não me opunha a isso. Ainda assim, não o aceitam. E pediram-me que voltasse a ir ao portal das matrículas e o voltasse a matricular noutra escola.
Claro que não fiz nada disso. Até porque há uma lista de 40 crianças para entrar na Bordalo, à espera de vaga. E pelo menos duas vêm da antiga turma do Damião, o que daria para fazerem uma nova turma, se quisessem…
Preciso da sua ajuda. Escrevo ao diretor a expor este assunto e pedindo que abra uma turma tendo em conta o número de alunos em espera? Fico quieta? (Porque legalmente a matrícula está feita e eles têm de resolver). O que me aconselha?”
É da natureza de quem é velho o “dar conselhos”. Como ainda não me considerava velho, não os dei, apenas sugeri a essa mãe que dirigisse ao diretor – por escrito e exigisse resposta por escrito – três perguntas:
Por que há “turmas”?
Por que não há vaga e o que é uma “vaga”?
Leu o projeto educativo da sua escola?
Sugeri a essa mãe a leitura da Lei de Bases. Nela se estipulava, por exemplo:
Artigo 2º. – Todos os portugueses têm direito à educação.
Artigo 48º – Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa
Artigo 57º – direito da família a orientar a educação dos filhos.
Aquela mãe acreditava ser o projeto educativo daquela escola aquele que melhor corresponderia à educação escolar desejada para o seu filho. Mas, nesse tempo, as escolas ainda tinham turmas e não tinham vagas. Quais seriam os “critérios de natureza pedagógica e científica” que suportavam a existência de “turmas” e a inexistência de “vagas”?
O Projeto Educativo era (melhor dizendo, deveria ser) o documento orientador da ação educativa, coerente com a intencionalidade educativa da escola, fator de fortalecimento de identidade e autonomia, esclarecedor de objetivos e de como se trabalharia para os atingir. Ao longo de mais de meio século, li centenas de projetos. A maioria nem sequer eram projetos, eram mais planos (mal feitos), ou cópias de outros “projetos”.
Constatei que a maioria dos professores não conheciam o seu conteúdo, nunca os tinham lido, muito menos o analisavam, e muitos eram aqueles que ignoravam a sua existência. Enfim!
Essa absurda situação tem explicação. Dar-vos-ei um exemplo de causa remota.
Decorria a década de setenta, quando uma colega me telefonou. Era assunto urgente:
“Olha, Zé, estamos aflitas. Passou por aqui um inspetor, perguntou pelo nosso projeto. A gente sabe lá o que isso é! Tu, que andas lá pelo sindicato, poderás ajudar-nos? Sabes fazer isso? O homem disse que ia voltar, no mês que vem, e que quer ver o tal de projeto. O que é isso? Ele disse que saiu uma lei…”
Amanhã, vos contarei o que aconteceu.
Por: José Pacheco
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