Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXCI)

Barra do Garças, 10 de julho de 2043

Nesta cartinha, completo o episódio dos idos de setenta, acrescentando-lhe reminiscências de cartas e outras mensagens. 

Tentei sossegar as minhas colegas professoras, explicando-lhes o que era “o tal de projeto” e me predispus a com elas reunir. 

Nas manhãs de sábado daquele tempo, os professores eram obrigados a fazer uma reunião de “Conselho Escolar”. Dado que cada professor se refugiava na solidão da sua sala de aula, não havia assunto de conversa comum. Mas, sedentos de companhia, essa reunião propiciava-lhes momentos de sã convivencialidade. Contornava-se o tédio de três horas de reunião, tricotando, comentando episódios de novela das oito, mostrando fotografias tiradas na última viagem, o álbum do casamento da filha mais velha, ou comprando produtos de beleza, que uma das colegas vendia, para compensar o baixo salário.

Eu, que não assistia a novelas das oito, não tinha fotografias para mostrar, nem tinha produtos de beleza para vender, levava o jornal para o ler. E, sempre que propunha debater algum assunto relacionado com o projeto da escola, colegas diziam para eu “ter juízo”, que “fizesse a ata da reunião”, porque, segundo eles, eu “tinha jeito para a escrita”.

Desse e de outros modos se consolidava uma cultura de escola “alheia a projetos”, se perdiam oportunidades de dignificação e melhoria do estatuto da profissão de professor. Por essa altura, teve início a reelaboração da minha cultura pessoa e profissional. E quase fui assassinado.

Foi rápida a reunião e eu pude voltar a casa no mesmo dia. Uma professora foi lendo o “projeto”, enquanto as restantes faziam crochet, ou conversavam sobre a a novela das oito. A certa altura, a leitora disse:

“Levaremos os nossos alunos à lota…”

As professoras pareciam estar alheias à fala da colega, mas estavam bem atentas e comprovei que possuíam uma boa memória dicótica.

“Ora repete lá isso outra vez, ó Joaquina!”

A Joaquina repetiu. E a pergunta veio em coro:

“O que é isso de lota? Eu não sei”.

Interrompi, para informar que lota era um lugar onde se expunha o peixe, quando os barcos voltavam da pesca.

“Estais a ver?” – disse a Joaquina – “Fizemos mal em copiar o projeto das colegas da Póvoa”.

Póvoa era uma localidade junto ao mar. A escola em causa ficava a mais de duzentos quilômetros do mar, mas a criatividade daquelas professoras era imensa. Logo, uma delas sugeriu:

“Não faz mal. Ó Joaquina, apaga a lota e põe a horta”.

E assim ficou um projeto de que o senhor inspetor muito gostou. E que foi parar no fundo de uma gaveta.

Querida Alice, quando nasceste, enviei-te uma cartinha, na qual te prometia a escola sonhada pelos teus pais:

“Entre agosto e setembro, entre o brincar sem cuidados e o ir à escola é só um saltinho de pardal. Dentro de poucos dias, a criança que és há-de ser “aluna”. Presumo que não vás perceber a diferença, mas não ouso afirmar. Quero apenas acreditar que, em 2007, já não sofras os dramas que crianças de outras gerações suportaram. Nasceste no primeiro ano deste século, mas houve alguém que, já no início do século XX, escrevia que aquele seria “o século da criança”. 

Irás fazer novos amigos e conhecer adultos que te ajudarão a compreender o mundo. É sobre esse mundo novo e misterioso, que se abre para os teus olhos de menina curiosa, que eu te venho falar.”

Mas já não seria o teu avô quem cumpriria a promessa feita no início do século. Nos idos de vinte e três, estavas fazendo o teu mestrado em psicologia. Era a tua vez de ajudar a cumpri-la. A profecia constava do livrinho escrito para o teu irmão: “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos”.

 

Por: José Pacheco

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