Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXL)

Santa Rosa. 28 de agosto de 2043

Netos queridos, admiro a vossa sinceridade. E não fiquei zangado por terdes dito que as últimas cartinhas foram “muito chatas”. É bem verdade! Por vezes, consigo ser mais “chato” do que é habitual. 

Volvidos vinte anos sobre  acontecimentos marcantes, ainda sinto necessidade de trocar o discurso da prática por uma leveza teórica desprovida de jargão académico, para lembrar que não foi fácil trocar o certo pelo incerto. 

Já isso vos dissera nas “Cartas para a Alice”, 

“Talvez se torne difícil para ti, Alice, que vives outros tempos, compreender por que pássaros sem alma roubavam primaveras e impunham céus cinzentos a muitas gerações. Prevejo impossível explicar-te o emudecer do canto dos bosques, esmagado por letais silêncios e sombras.”

Setembro se aproximava. E recebíamos notícias já esperadas de reações negativas à proposta das novas construções sociais:

“Ando com o coração apertado, com receio de que as turmas piloto não se concretizem. Não tenho conseguido falar com a doutora, que é diretora do agrupamento”.

A generosa Vovó Ludi me pedia que não fosse rude para com “lideranças tóxicas” e eu fazia um esforço sobrehumano para atender ao seu pedido. Tinha gasto mais de meio século envolvido em confrontos com saldo de muitas perdas. Não poderia consentir que mais uma infantil ou juvenil geração se perdesse nas malhas do instrucionismo. Mas, deveria buscar por outras vias a escola que a geração do Theo e da Analu merecia.  

A Educação do Sul andava distraída, “sem perceber que era subtraída
em tenebrosas transações”. E o que poderia fazer um imigrante do Norte, despido da etnocêntrica arrogância, mas ainda endurecido pela memória de europeias contendas? 

Talvez devesse ouvir o que a Vovó Ludi me dizia. Escutá-la, para aprender a bonançosa gramática do sul. E assim fiz. Segui-lhe os passos, na Casa Reviver e em Maricá, por onde andasse semeando novas práticas. Chegara o tempo de o vosso avô ser apenas um aprendiz de utopias. E de partilhar alguns (poucos) saberes, para evitar que outros fizessem as besteiras que eu fizera.

Propunha que, tão logo aderissem a algum projeto, negociassem autonomia,  que se criasse um GT (Grupo de Trabalho), a quem competiria criar condições de fundamentação legal e científica. Que nada começasse sem garantia de autonomia! 

Entre as décadas de vinte e de trinta, numa formação de novo tipo, não considerávamos os professores como objetos de formação. Deles cuidávamos na dignidade de sujeitos de aprendizagem. 

Lidávamos, sobretudo, com um grave problema: o analfabetismo. No agosto de vinte e três, a Rede Latino-americana de Alfabetização emitia um comunicado nas redes sociais, lamentando o falecimento de Emília Ferreiro. Ainda não tínhamos feito o luto da partida da Magda, e a Emília se lhe foi juntar. 

Vivíamos de perdas e danos, procurando juntar à memória de insignes educadoras a prática dos seus legados. Emília fora a referência maior para aqueles que buscavam a compreensão do processo de alfabetização e a aquisição da linguagem em crianças, que buscavam entender o pensamento das crianças em desenvolvimento e como elas construíam seu próprio conhecimento. 

A sua abordagem construtivista gerou evolução paradigmática, a partir de propostas de Piaget, seu mestre e orientador de doutoramento. Porém, só mais tarde, muito após a sua morte, a sua obra (onde avulta a “Psicogênese da Língua Escrita”) foi objeto de estudos de profundidade e fertilizou práticas. O seu exemplo de hábil e exigente pesquisadora ainda perdura, neste ano da graça de dois mil e quarenta e três.

 

Por: José Pacheco

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