Cabuçu, 29 de agosto de 2043
Há uns vinte anos atrás, o amigo Mauro questionava:
“Sempre fico me perguntando como podemos ser assertivos naquilo que o amigo Zé tem reiterado: o rompimento definitivo com o instrucionismo e suas marcas: padronização, seriação, aulas.”
Exatamente, meu amigo. O dito “sistema” é hábil, manhoso, e dispõe de muitos artifícios e financiamento. Assimila e digere as “novidades”. “Especialistas” lhe conferem cobertura “científica”. E o ministério adota paliativos, anunciando-os como “inovações”.
Falando para os seus botões, o amigo Mauro fazia a mesma pergunta, que eu fizera ao longo de mais de meio século. Com a passagem do tempo, o “sistema” foi introduzindo nos seus projetos palavras como “autonomia” e “cidadania”, ou expressões do tipo “metodologias ativas” e “educação integral”.
Mas, cadê a autonomia, a cidadania, a educação integral e as metodologias ativas? Em sala de aula, praticava-se uma “metodologia inativa”. A educação integral era confundida com doses duplas de tédio escolar. A autonomia era incompatível com o dever de obediência hierárquica. E da cidadania praticada entre as quatro paredes de uma sala de aula nem é bom falar.
De nada adiantava António Nóvoa afirmar, há mais de quarenta anos que, pela via de reformas reformadas, tudo continuaria igual. E enquanto dizia que não haveria salas de aula no futuro, “especialistas” “inventavam salas de aula do futuro”.
O “sistema” fazia ouvidos de mercador, quando Pedro Demo dizia que o lugar do professor não era o centro do processo. Talvez o amigo Pedro fosse o mais esclarecido cientista da educação da sua geração. Era, sobretudo, um pesquisador ético, rigoroso. Sabia que seria preciso sair do sistema de ensinagem e “fazer outro”. Nos seus livros, abordou o conceito de “autoria”. Para Pedro Demo, o “protagonismo juvenil”, a “autonomia do estudante” e outros modos de recriar a escola tinham sido “atos falhos”:
“A escola que temos, do início do século passado, de molde fordista reprodutivista (…) é uma fabriqueta instrucionista, devotada a reproduzir conteúdos curriculares, sistematicamente.
Enquanto não falta aula, aprendizagem é apenas eventual. Os conteúdos, devidamente codificados alfanumericamente (para que nenhum escape ao controle instrucionista), serão, provavelmente, transmitidos como sempre foram, porque é isto que o sistema, ao final, exige, não aprendizagem, e mormente porque os professores foram “deformados” para este tipo de atividade instrucionista na faculdade.
Toda mudança proposta é armada dentro do sistema, para aprimorá-lo ou adaptá-lo, nunca para o superar. O sistema instrucionista atual de ensino não faz sentido, porque é completamente inepto em termos de produzir aprendizagem.”
Edgar Morin assim resumiu a situação:
“A sociedade produz a escola, que produz a sociedade. Desde logo, como reformar a escola, se não se reforma a sociedade? Mas, como reformar a sociedade se não se reforma a escola?”
No setembro de há vinte anos, havia quem, como a Vovó Ludi, erguesse uma voz clara no caos de um desconcerto organizado:
“Em qual espaço orbita a voz de quem educa?”
Numa amena conversa, a educadora Fabi ergueu a sua voz, para interpelar outros educadores:
“Qual é afinal a escola que NÃO queremos? A escola é mesmo violenta!”
Logo deparou com olhares de espanto. Como se o óbvio, como dissera a Tina, tivesse de ser esquecido, as orientações óbvias tendessem a ser descartadas e as declarações óbvias negligenciadas perante “evidências”.
Naquele setembro, denunciamos:
“O que é evidente… mente!”
Por: José Pacheco
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