Inoã, 8 de setembro de 2043
No setembro de vinte e três, o jornal Labor publicava a seguinte notícia:
“Há uma Escola para além da sala de aula.
EB1/JI de Fundo de Vila acolhe a primeira comunidade de aprendizagem de S. João da Madeira e uma das poucas existentes no país.
Imagine uma turma do primeiro ciclo composta por crianças de diferentes idades e anos de escolaridade e que não terá uma sala de aula “tradicional” (…).”
O júbilo deu lugar a alguma frustração. Nesse mesmo dia, um amigo me reencaminhou uma triste mensagem, contrastante com a boa notícia, enviada por uma professora para um doutor, no Facebook:
“Admiro esse seu empenho em tentar ler livros, em tentar entender e discutir educação desse jeito mais profundo, mais sistematizado… Vou te confessar uma coisa. Você me conhece a pouco tempo, já me conheceu assim do jeito que estou, mas eu não era assim. Eu era uma professora dedicada, vivia participando de cursos, comprando livros, me envolvendo em debates sobre ensino, sobre aprendizagem, sobre política educacional.
Faz pouco tempo. Foi de uns tempos pra cá que fiquei assim. Tenho feito só pro gasto. Não leio mais nada, não participo de mais nada, não tenho ânimo pra discutir e nem propor mais nada…
Sabe, eu ouço com náuseas aquele monte de bobagens nas formações pedagógicas. Fico sempre bem quieta. Só faço aqueles cursinhos de formadores para não perder classificação na escola. Tento até ser simpática. Rio das piadinhas de mau gosto, faço de conta que concordo com sugestões de medidas idiotas, de uso de metodologias diferenciadas, de aplicativos, de premiação, de punição e de controle de estudantes…
Estou me sentindo embrutecida. Acho que fui contaminada, derrotada. Virei parte dessa coisa gosmenta e malcheirosa que virou a escola pública de nosso estado.
É claro que me sinto muito mal com tudo isso. Me sinto muito mal mesmo. Eu queria era gritar, sumir, me enterrar, ir pra bem longe, que ninguém mais lembrasse de mim.
Sim. Sim. Eu queria ter essa disposição que você tem. Eu queria gritar, dizer não, não quero isso, não concordo, não vou reduzir meu trabalho de professora ao uso de plataformas, ao controle, à seleção e à exclusão de estudantes…
Sim. Eu sei. Nem precisa falar. Mas olhe para mim! Você acha que posso? Cadê a força? Cadê a coragem? Estou sozinha, pressionada, insegura.
Você entende o que estou dizendo? Estou sempre olhando para o calendário em busca do próximo feriado, das férias, da morte… Aquela professora alegre e cheia de vida morreu. Morreu, ou se escondeu dentro da tristeza. Virei esse zumbi com diabetes, pressão alta e ansiedade, virei um molambo esperando o salário miserável do final do mês.
Procurar tratamento? Eu tomo um monte de boletas todo dia. Todos nós tomamos. Como você acha que eu consigo sair da cama pra vir pra cá?
Esses dias, fui em uma psicóloga que me indicaram. Falaram que era boa, ex-professora, conhecia nossa realidade. Mas sabe o que ela me disse? Você já deve ter ouvido isso por aí.
Ela falou na cara dura. A tal psicóloga que era professora disse que eu precisava me reinventar, que os tempos são outros, que é preciso encontrar vida no presente, mudar o jeito de olhar as coisas. Ela falou da flor de lótus dos budistas: é do lodo e do sofrimento que emergem a consciência pura e a felicidade, tenho que olhar para os estudantes que precisam de mim, amor e compaixão promovem alegria e vontade de viver.
O que eu respondi? Nada. Não respondi nada. Eu chorei. Chorei muito.”
Amanhã, irei transcrever o restante da mensagem. E darei resposta à pergunta do meu bom amigo: *O que você diria a esta professora?”
Por: José Pacheco
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