Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLII)

Várzea das Moças, 9 de setembro de 2043

Netos queridos, como o prometido é devido, retomo a transcrição de uma mensagem publicada no velhinho Facebook. Nela, uma professora desfiava um rosário de queixumes e questionamentos:

“De onde tirar amor quando sobre mim pesam olhares de ódio? 

Disse pra ela [à psicóloga] que não, que não dava, que não fui inventada, não sou inventada. Não sei e não posso me reinventar. Falei que eu era gente, que tenho uma história, fui construída, sonhei, tive esperanças.

Querem que eu me reinvente, que aceite as mudanças, que me plataformize, que ache normal a monstruosidade desse cotidiano opressor e violento? Querem mesmo é que eu morra.”

Dirigindo-se ao doutor, para quem enviara a mensagem, pergunta:

“O que você acha? Você estuda, você é inteligente. O que devo fazer? O que a gente deve fazer? Pedir a conta faltando poucos anos pra me aposentar, sem dinheiro, sem nada? Então, você acha que eu deveria lutar? Que eu deveria reagir, chutar o pau da barraca podre? 

Tá certo, eu deveria, sei que deveria, sozinha, quixotesca, ridícula e reclamona.

Não sei, mas esse meu silêncio, essa face distorcida, esse meu riso meio dissimulado, cheio de ironias e de cansaço, esse falar pra baixo, esse olhar meio pro lado… Não sei, talvez esse seja o jeito de resistir, de insistir. 

Esse copo vazio está cheio de ar. Talvez, assim, no silêncio contido, na voz embargada, talvez eles passarão. Talvez eu passarinho. Talvez amanhã seja outro dia. 

Talvez a gente se encontre pra outras folias. Talvez eu consiga ler um poema. Talvez o amor bata à porta. Talvez amanhã seja segunda-feira.

Vamos tomar um sorvete caminhando no parque?”

E o meu bom amigo também perguntava: 

“Gostaria de ter seus comentários pessoais sobre a mensagem da angustiada professora. O que você diria a esta professora?”

No fundo do baú das velharias, repousava a pen drive em que gravei a resposta. Ei-la:

“Querido amigo, no meu computador – e em papel, antes de haver computadores – guardei uma triste “coleção” de mensagens dessa natureza. Pela Internet – e por carta, antes de haver Internet – lhes dei resposta. Respostas solidárias, dadas no chão das escolas. Estimulava o seu inconformismo, o seu poder criador. 

Ajudei milhares de professores, centenas de projetos. Quase todos foram destruídos. Os seus autores foram sujeitos a ameaças e processos disciplinares. Alguns foram parar no divã do psiquiatra, outros mudaram de profissão. 

Cadê aqueles que poderiam dar suporte “teórico” às iniciativas dos “práticos” e evitar que a história da inovação se transformasse num cemitério de projetos? Estavam ocupados na redação de teses, comodamente instalados nos seus gabinetes universitários, ou lendo power point nos palcos dos congressos. Perante os dramas vividos por essa e por outros professores, era obsceno o silêncio dos “cientistas da educação”.

A professora autora da mensagem fora vítima voluntária de uma mentira a que davam o nome de “formação”. Vivera no tempo em que, nas catacumbas da formação de professores, ainda se usava falar de ”sala de aula” e outras obsolescências caídas em desuso, anos atrás. Foi formatada como “docente” – o dicionário diz-nos que docente é “a pessoa que ministra aulas” – abdicou de ajudar a aprender. Aceitou fenecer, tentando ensinar – como se fosse possível dar de beber a um cavalo que não tem sede! – na solidão do frontal anónimo de uma sala de aula. 

Netos queridos, o mesmo tentaram fazer com o vosso avô. Ameaçaram-no, de vários modos o puniram, e nada adiantou – uma decisão fora tomada.

Não curto heroísmos baratos, mas sou taurino.

 

Por: José Pacheco

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