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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLII)

Coimbra, 30 de agosto de 2043

“Da Alice para avô Zé” – foi aquilo que escreveste junto ao cartãozinho que de ti recebi, no dia do meu aniversário e que, religiosamente, eu guardo. 

Há uns vinte anos, no dia em que completava vinte e duas primaveras, enviei-te uma cartinha contendo o início e o final de um livrinho que escrevi quando nasceste. Como o tempo passa! Em 2043, as palavras ganham novos significados, mas aqui recordo alguns trechos desse livrinho, como singela homenagem e amoroso gesto. Parabéns!

“Algures, em 15 de setembro de 2007, 

Querida Alice, aqui estou, a entregar-te este montinho de cartas. Quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens to permitir, hás-de lê-las. Esta é a última das cartas, que não o fim da história. Este é o dia da tua primeira ida à escola, o início de uma outra história. E ambas terão os desfechos que lhes quiseres dar. A vida é uma história sempre inacabada a que podemos conferir diferentes desenlaces. Basta que não nos confinemos aos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres deste nosso tempo da proto-história dos homens. 

Quando, depois de extintos os ecos do tempo da história, os homens acederem à era do espírito, hão-de entender a fragilidade dos paradigmas que sustentavam as suas ciências. Hão-de reconhecer como aparentes as suas imutáveis realidades. Hão-de reconhecer a falsa moral das suas histórias, se comparada com a doce amoralidade dos pássaros. 

Quero que saibas que, quando os homens criam ser o seu mundo plano e limitar-se aos mediterrânicos limites, já os pássaros sabiam ter o planeta forma arredondada, por o terem sobrevoado de lés a lés. No tempo em que os homens criam ser o centro do mundo e viam abismos e monstros na linha do horizonte, os pássaros redefiniam zénites e provavam que o espaço é ilimitado como a música e os sonhos. Onde, antigamente, os homens idealizaram um céu de vida eterna para os seus eleitos, havia pássaros. Quando os desvendadores dos segredos dos mares atingiram novos mundos, encontraram pássaros. Quando os homens voaram até à Lua e dela contemplaram o planeta azul, compreenderam que o azul que os separava do imenso e negro espaço não tinha segredos para os pássaros que, há séculos, o habitavam. E, quando os astrónomos, espreitaram através de potentes telescópios, penetrando distantes galáxias e confirmando a antiga predição de que o que está por baixo é igual ao que está no alto, viram pássaros invisíveis pousados no asteroide B 612. 

Para ti, querida Alice, é natural o modo doce como a escola te acolhe. Neste primeiro dia do resto da tua vida parece que sempre assim foi. Mas, para que pudesses amar o ir à escola, muitos foram os pássaros que sofreram a dor de um tempo em que as gaivotas se condoíam de ver jovens pássaros amontoados em celas de betão e vigiados nos seus mínimos gestos. 

Por mais inverosímil que possa parecer, era mesmo assim, querida Alice. A infantil curiosidade acabava desfeita em submissões. 

Busca a sabedoria dos pássaros. Deixa fluir a torrente dos dias invulgares que vem de muito dentro de ti. Deixo-te histórias por completar, porque tudo o que é predito é da natureza das coisas inertes. Porque tudo aquilo em que não cabe um pensamento divergente, confunde a semente com o gesto. Porque tudo o que é previsível estiola. 

A vida é um constante recomeço. Se a cidade de Tecla nunca foi concluída, para que ninguém pudesse iniciar a sua destruição, por que se preocupam os homens em imprimir uma moral e dar desfecho às histórias que inventam? 

Te contarei outras estórias e tu hás-de extrair a moral dessas estórias – A tua moral, é claro!”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXLI)

Cabuçu, 29 de agosto de 2043

Há uns vinte anos atrás, o amigo Mauro questionava:

“Sempre fico me perguntando como podemos ser assertivos naquilo que o amigo Zé tem reiterado: o rompimento definitivo com o instrucionismo e suas marcas: padronização, seriação, aulas.”

Exatamente, meu amigo. O dito “sistema” é hábil, manhoso, e dispõe de muitos artifícios e financiamento. Assimila e digere as “novidades”. “Especialistas” lhe conferem cobertura “científica”. E o ministério adota paliativos, anunciando-os como “inovações”.

Falando para os seus botões, o amigo Mauro fazia a mesma pergunta, que eu fizera ao longo de mais de meio século. Com a passagem do tempo, o “sistema” foi introduzindo nos seus projetos palavras como “autonomia” e “cidadania”, ou expressões do tipo “metodologias ativas” e “educação integral”. 

Mas, cadê a autonomia, a cidadania, a educação integral e as metodologias ativas? Em sala de aula, praticava-se uma “metodologia inativa”. A educação integral era confundida com doses duplas de tédio escolar. A autonomia era incompatível com o dever de obediência hierárquica. E da cidadania praticada entre as quatro paredes de uma sala de aula nem é bom falar.

De nada adiantava António Nóvoa afirmar, há mais de quarenta anos que, pela via de reformas reformadas, tudo continuaria igual. E enquanto dizia que não haveria salas de aula no futuro, “especialistas” “inventavam salas de aula do futuro”. 

O “sistema” fazia ouvidos de mercador, quando Pedro Demo dizia que o lugar do professor não era o centro do processo. Talvez o amigo Pedro fosse o mais esclarecido cientista da educação da sua geração. Era, sobretudo, um pesquisador ético, rigoroso. Sabia que seria preciso sair do sistema de ensinagem e “fazer outro”. Nos seus livros, abordou o conceito de “autoria”. Para Pedro Demo, o “protagonismo juvenil”, a “autonomia do estudante” e outros modos de recriar a escola tinham sido “atos falhos”:

“A escola que temos, do início do século passado, de molde fordista reprodutivista (…)  é uma fabriqueta instrucionista, devotada a reproduzir conteúdos curriculares, sistematicamente. 

Enquanto não falta aula, aprendizagem é apenas eventual. Os conteúdos, devidamente codificados alfanumericamente (para que nenhum escape ao controle instrucionista), serão, provavelmente, transmitidos como sempre foram, porque é isto que o sistema, ao final, exige, não aprendizagem, e mormente porque os professores foram “deformados” para este tipo de atividade instrucionista na faculdade.

Toda mudança proposta é armada dentro do sistema, para aprimorá-lo ou adaptá-lo, nunca para o superar. O sistema instrucionista atual de ensino não faz sentido, porque é completamente inepto em termos de produzir aprendizagem.”

Edgar Morin assim resumiu a situação: 

“A sociedade produz a escola, que produz a sociedade. Desde logo, como reformar a escola, se não se reforma a sociedade? Mas, como reformar a sociedade se não se reforma a escola?” 

No setembro de há vinte anos, havia quem, como a Vovó Ludi, erguesse uma voz clara no caos de um desconcerto organizado:

“Em qual espaço orbita a voz de quem educa?”

Numa amena conversa, a educadora Fabi ergueu a sua voz, para interpelar outros educadores: 

Qual é afinal a escola que NÃO queremos? A escola é mesmo violenta!” 

Logo deparou com olhares de espanto. Como se o óbvio, como dissera a Tina, tivesse de ser esquecido, as orientações óbvias tendessem a ser descartadas e as declarações óbvias negligenciadas perante “evidências”.

Naquele setembro, denunciamos: 

“O que é evidente… mente!”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXL)

Santa Rosa. 28 de agosto de 2043

Netos queridos, admiro a vossa sinceridade. E não fiquei zangado por terdes dito que as últimas cartinhas foram “muito chatas”. É bem verdade! Por vezes, consigo ser mais “chato” do que é habitual. 

Volvidos vinte anos sobre  acontecimentos marcantes, ainda sinto necessidade de trocar o discurso da prática por uma leveza teórica desprovida de jargão académico, para lembrar que não foi fácil trocar o certo pelo incerto. 

Já isso vos dissera nas “Cartas para a Alice”, 

“Talvez se torne difícil para ti, Alice, que vives outros tempos, compreender por que pássaros sem alma roubavam primaveras e impunham céus cinzentos a muitas gerações. Prevejo impossível explicar-te o emudecer do canto dos bosques, esmagado por letais silêncios e sombras.”

Setembro se aproximava. E recebíamos notícias já esperadas de reações negativas à proposta das novas construções sociais:

“Ando com o coração apertado, com receio de que as turmas piloto não se concretizem. Não tenho conseguido falar com a doutora, que é diretora do agrupamento”.

A generosa Vovó Ludi me pedia que não fosse rude para com “lideranças tóxicas” e eu fazia um esforço sobrehumano para atender ao seu pedido. Tinha gasto mais de meio século envolvido em confrontos com saldo de muitas perdas. Não poderia consentir que mais uma infantil ou juvenil geração se perdesse nas malhas do instrucionismo. Mas, deveria buscar por outras vias a escola que a geração do Theo e da Analu merecia.  

A Educação do Sul andava distraída, “sem perceber que era subtraída
em tenebrosas transações”. E o que poderia fazer um imigrante do Norte, despido da etnocêntrica arrogância, mas ainda endurecido pela memória de europeias contendas? 

Talvez devesse ouvir o que a Vovó Ludi me dizia. Escutá-la, para aprender a bonançosa gramática do sul. E assim fiz. Segui-lhe os passos, na Casa Reviver e em Maricá, por onde andasse semeando novas práticas. Chegara o tempo de o vosso avô ser apenas um aprendiz de utopias. E de partilhar alguns (poucos) saberes, para evitar que outros fizessem as besteiras que eu fizera.

Propunha que, tão logo aderissem a algum projeto, negociassem autonomia,  que se criasse um GT (Grupo de Trabalho), a quem competiria criar condições de fundamentação legal e científica. Que nada começasse sem garantia de autonomia! 

Entre as décadas de vinte e de trinta, numa formação de novo tipo, não considerávamos os professores como objetos de formação. Deles cuidávamos na dignidade de sujeitos de aprendizagem. 

Lidávamos, sobretudo, com um grave problema: o analfabetismo. No agosto de vinte e três, a Rede Latino-americana de Alfabetização emitia um comunicado nas redes sociais, lamentando o falecimento de Emília Ferreiro. Ainda não tínhamos feito o luto da partida da Magda, e a Emília se lhe foi juntar. 

Vivíamos de perdas e danos, procurando juntar à memória de insignes educadoras a prática dos seus legados. Emília fora a referência maior para aqueles que buscavam a compreensão do processo de alfabetização e a aquisição da linguagem em crianças, que buscavam entender o pensamento das crianças em desenvolvimento e como elas construíam seu próprio conhecimento. 

A sua abordagem construtivista gerou evolução paradigmática, a partir de propostas de Piaget, seu mestre e orientador de doutoramento. Porém, só mais tarde, muito após a sua morte, a sua obra (onde avulta a “Psicogênese da Língua Escrita”) foi objeto de estudos de profundidade e fertilizou práticas. O seu exemplo de hábil e exigente pesquisadora ainda perdura, neste ano da graça de dois mil e quarenta e três.

 

Por: José Pacheco

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