Icaraí, 29 de outubro de 2043
Queridos netos,
Ontem, certamente, sentistes o travo amargo presente na evocação da partida da minha amiga Rosinha. Há dias assim, cinzentos, marcados por uma infinita tristeza.
Ao longo da minha já longa existência, tal como qualquer ser humano, aprendi a transcender o desgosto, a sofrer metamorfoses e, sem ver um mundo cinzento com lentes cor-de-rosa, fiz jus à memória de entes queridos, ajudando a pintá-lo com claridades.
Transmutemos a dor das perdas em cenário de regeneração. Percorramos o “Caminho de Santiago”, evocado por José Saramago:
“No meio da paz noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea.”
Na mesma senda de renovação, Renato Braz cantava, apontando o Sul, norteando a Terra:
“Quem me dera / Olhar as estrelas / Sem pensar nas cruzes ou nas bandeiras / Quem dera as luzes da Via-Láctea / Iluminassem as cabeças / E acendessem um sol em cada pessoa / Que aquecesse o sonho e secasse a mágoa.”
Era essa a sina de quem, nascido num cantinho de Universo chamado Terra, logo após uma “Segunda Guerra”, iria viver quase um século de intermináveis guerras.
Eram mais as guerras surdas do que aquelas que eram escolhidas para mostrar. Uma delas, talvez a menos visível, era aquela que opunha pessoas como a Rosinha a um submundo feito de egoísmo e fundamentalismo: o educacional.
Animado pelo romântico espírito do “maio de 68” e ansiando por um pouco de Paz, um improvisado Dom Quixote (sem Sancho Pança) havia quebrado lanças contra moinhos de vento. Quando, meio século depois, lhe restava um breve sopro de vida, sem prescindir de um romantismo que nos punha alerta, conspirou. Foi tempo de surgimento (ou ressurgimento) de assembleias. Demos-lhes o nome de ARCA (Assembleia de Redes de Comunidades de Aprendizagem).
Em Portugal, o amigo Luís reuniu companheiras e companheiros de uma sã aventura. Depois… depois vos contarei, em próximas cartinhas.
No Brasil desse tempo, o vosso avô acompanhava a Vovó Ludi, que, por sua vez, acompanhava a evolução das conferências preparatórias de um novo Plano Nacional de Educação.
A primeira impressão era a de que o novo plano já nascia velho. No município X, por exemplo, debatia-se o Eixo IV, o da gestão democrática. A reivindicação básica era a da eleição direta de diretores.
Era nobre a intenção, para evitar que a baixa política continuasse a controlar esse processo. E era crença generalizada que, substituindo a “indicação política” pelo exercício de votar e eleger, seria instituída a gestão democrática nas escolas e no sistema. Puro engano! Em Portugal, há muito tempo já, se conseguira eleger os diretores. Porém, os diretores permaneciam dependentes do dever de obediência hierárquica, novas e sutis formas de controle eram exercidas.
O debate operado nas conferências pecava por “não sair da caixa”, não conseguia escapar do círculo vicioso imposto por um sistema hierárquico e autoritário. A consequência lógica seria a de não se progredir, mas voltar ao mesmo lugar – apenas se anunciava mais dez anos de tempo perdido.
Ainda assim, continuamos assistindo a conferências em mais dois municípios. No 29 de outubro de há vinte anos, assistimos ao encerramento daquela que decorreu no município X e nos preparamos para participar na conferência realizada no município Y. Com o respeito que merecia a iniciativa, sem intervir, mas com apurado senso crítico.
(continua)
Por: José Pacheco