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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCII)

Fortaleza, 19 de outubro de 2043

E lá voltei a Fortaleza, para conversar com educadores e rever amigos. Também voltei para deixar um convite, pois senti que a secretária Dalila partilhava as mesmas preocupações da minha amiga Regina e de outros educadores com quem eu havia trabalhado, dez anos antes.

Isso mesmo! Passara uma década sobre o meu voluntariado no Kerigma. Também, sobre uma intensa participação nas conferências preparatórias do PNE e sobre a elaboração do “Terceiro Manifesto da Educação”. 

Esse documento fora aprovado na primeira C.O.N.A.N.E. – Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação – e acolhido pelo Ministro da Educação, na pessoa da minha amiga Jaqueline Moll.

A Jaqueline fora subscritora do “Manifesto para uma Educação Democrática e Humanizadora”, de 2021. Eu acompanhara o excelente trabalho que ela havia desenvolvido no “Mais Educação”. E me orgulhava por estar ao lado dela e de outros admiráveis mestres, na assinatura desse manifesto, que era um convite à participação:

“Nós, professores e pesquisadores envolvidos em projetos e ações para uma educação democrática e humanizadora, queremos expressar aqui nossas preocupações em relação ao trabalho dos educadores em face do que vem acontecendo, neste momento, em nosso país, na política, na economia e, principalmente, na saúde e na educação.”

A elaboração do documento fora, também, um freiriano gesto de denúncia e anúncio, um ato de coragem:

“Em nome dos valores que compartilhamos em relação à vida, à saúde, à educação, ao ambiente, queremos expressar neste Manifesto nosso profundo desacordo com o que vem acontecendo em nosso país no campo político, econômico, cultural, sanitário e educacional e, ao mesmo tempo, chamar a atenção dos educadores brasileiros sobre os retrocessos atuais, principalmente nas áreas da educação e da escola.”

O manifesto denunciava “o desconhecimento por parte das autoridades do governo e dos políticos do Congresso Nacional do Plano Nacional de Educação 2014-2024”. Uma avaliação realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais revelara uma realidade preocupante. O Brasil apenas cumprira uma das vinte metas previstas para serem atingidas, entre 2014 e 2024. As restantes estavam longe de serem alcançadas ou apenas parcialmente tinham sido cumpridas.

A única meta integralmente atingida no PNE era aquela que se referia à formação de professores do ensino superior. E dessa formação nem é bom falar! O vosso avô teria muito que dizer sobre a deformação que, no “superior” se fazia. Se quiserdes, talvez o faça, mas em outra cartinha.

Ao cabo de vinte anos, o artigo 15º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional continuava sem efeitos práticos, situação agravada pelo fato de a administração educacional não ter cumprido a meta 19 no prazo estabelecido pelo Plano Nacional de Educação. 

Isso mesmo: o poder público não cumpria leis que promulgava. Gestores escolares continuavam a assumir cargos por indicação de políticos e o “dever de obediência hierárquica” negava às escolas o direito à autonomia pedagógica, administrativa e financeira. Só quem não conhecesse a realidade do chão das escolas poderia crer que nelas fossem cumpridos os artigos 12º e 13º da LDBEN.

Um plano decenal havia fracassado. O próximo PNE poderia vir a ter o mesmo inglório destino. A corrupção, os conluios políticos, as práticas populistas dos candidatos do pleito eleitoral de 2024, poderiam deitar a perder mais uma oportunidade de mudança.

Até que o senhor ministro da educação decidiu deitar faladura.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXCI)

Cabrália, 18 de outubro de 2043

Nos idos de vinte, era frequente o anúncio de “novidades” requentadas e de velhas propostas embrulhadas em discursos novos. Eram publicadas sibilinas “recomendações” extraídas de compêndios de meados do século XX, descrevendo inexistentes práticas. Por exemplo:

“Adotar a conceção de desenvolvimento integral no Ensino Médio implica estimular e fortalecer a autonomia do(a) estudante (…) para que possa se engajar nos estudos a partir dos seus interesses e necessidades, para construir e atuar pelo seu projeto de vida e agir coletivamente no desenvolvimento de sua comunidade. A escola deve adotar diferentes estratégias, considerando que as pessoas aprendem de formas e em ritmos diferentes, sendo diversos seus conhecimentos prévios, habilidades e inclinações.”

Cadê o “desenvolvimento da comunidade” e as “diferentes estratégias”?

O farisaísmo pedagógico não interrogava a existência de um “ensino médio”, não sabia explicar a sua existência, mas acrescentava a esses pedaços de senso comum misturados com pedagogia bolorenta, expressões na moda, como “projeto de vida”. 

Como se fosse possível desenvolver um currículo da subjetividade, contemplar “ritmos diferentes”, “interesses e necessidades” de cada aluno, em sala de aula! Como se fosse possível o “fortalecimento da autonomia”, em sala de aula!  Com desfaçatez, se repetia à exaustão a cantilena do “estudante como o ator ou a atriz principal do processo pedagógico, estimulando o seu protagonismo”.

Em finais de 2023, era por demais evidente a necessidade de transitar de um obsoleto sistema de ensino para um novo sistema de aprendizagem, do autoritarismo prussiano passar à democratização, substituir um modelo imoral e corrupto por uma construção social de aprendizagem humanizada, ética. Há muito tempo já, o Mestre Pedro denunciava as péssimas condições da escola instrucionista. Dizia não existir um projeto de mudança satisfatório, parecendo que a escola que tínhamos era um modelo intocável. 

Num célebre texto com o título “EDUCAÇÃO À DERIVA: instrucionismo como patrimônio nacional”, escreveu:

“O sistema educacional mostra aberrações inomináveis em termos de qualidade da aprendizagem, que persistem arraigadas, não comparecendo, contudo, gesto minimamente adequado de mudança. Em especial no ensino médio, o aprendizado de matemática é insignificante: foi de 9.1% em 2017. No Enem, apenas 53 estudantes obtiveram nota máxima em redação, dentre 4 milhões de participantes; quase ninguém.”

Alheia aos trágicos indicadores e à avisada voz do Mestre Pedro, a administração educacional tentava colmatar defeitos, injetando nas escolas “ensinos híbridos” e outras inutilidades, desperdiçando recursos e vidas. 

Mas as ideias arejadas são peregrinas, permitem que a humanidade refunda o seu complexo percurso. Houve professores que ousaram interrogar-se e interrogar: 

“Por que há ensino médio? Por que há salas de aula? Por que há…?” 

No “Reino do Sem Sentido”, a intenção válida não era a tentar melhorar práticas instrucionistas, nem de tentar melhorar o IDEB. A mudança ia muito além de dados fornecidos por uma desumana escala de classificação. 

A partir do que éramos, do que sabíamos fazer e do que fazíamos, urgia afirmar a possibilidade de conceber uma construção social a partir das pessoas que habitavam um mesmo território físico e/ou virtual, que partilhavam valores e uma mesma visão de sociedade, produzindo e partilhando e conhecimento, operando transformação social, melhorando a qualidade da vida em comum.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXC)

Eunápolis, 17 de outubro de 2043

Notícias de guerra chegavam em catadupa, notícias de sofrimento e morte, lá para os lados do Oriente. Sofrimento e morte, cá dentro. Enquanto caminhávamos, fomos escutando queixas e súplicas:

“Ó dotor, me dá sete reais para mim comprar arroz, p’ra mim comer.”

“Tio, a polícia matou o meu pai! Tio, a polícia matou…!”

Debaixo de um velho e carcomido toldo, saiu uma criança portando mochila. Caminhando sob um sol abrasador, diz-nos que “vai p’ra escola”. 

Irá passar algumas horas a copiar o que a professora escrever no quadro negro. Nada aprenderá, mas terá direito a uma refeição. Ao fim de semana, nem isso. 

“É fome de cachorro vadio” – diz uma transeunte – “A gente, aqui, num tem que comer”. 

“A Janete é que tem sorte! É faxineira. Faz oito horas em duas casas. Leva quatro horas para ir e vir, mas tem com que dar de comer aos filhos.”

Uma assistente social segreda:

“Só ali, são sete filhos carregados de piolhos, com feridas por todo o corpo. A mais velha foi mãe aos treze. Alguns nem vão à escola. Se dermos conhecimento da situação ao Conselho Tutelar, não tarda aí a polícia. E as crianças correm o risco de acabar num asilo de menores.

De um “manifesto” publicado em 2021 extraí este excerto:

“Nós, professores envolvidos em projetos e ações para uma educação democrática e humanizadora, queremos expressar aqui nossas preocupações em relação ao trabalho dos educadores em face do que vem acontecendo, neste momento, em nosso país, na política, na economia e, principalmente, na saúde e na educação.”

Como explicar que os autores desse “manifesto” se mantivessem ancorados em práticas instrucionistas? Já dissera o amigo Nóvoa que a sofisticação do discurso se mantinha alheia a miséria das práticas. Quando esperava que os acadêmicos, se manifestassem, teoricistas apresentavam “recomendações”, há muito tempo, consensuais, mas de inviável concretização em sala de aula:

Criar espaços e estratégias para estimular que estudantes se ajudem mutuamente no aprendizado bem como aprendam a aprender também sem ajuda; valorizar as diferenças étnicas, sociais e culturais e os conhecimentos próprios, planejando os saberes a tratar, orientados pelas necessidades dos educandos; incluir no tempo e currículo escolar práticas que possam apoiar estudantes a “aprender a aprender” e a estudar individual e coletivamente sem mediação de docentes; promover a reorganização do tempo e do espaço escolar tradicional em função de uma proposta pedagógica com foco nas demandas das juventudes, buscando estratégias que fortaleçam o trabalho coletivo e a aprendizagem prática, conectando as propostas curriculares às necessidades de aprendizagem e projetos de interesse dos estudantes; garantir e promover opções variadas de percursos formativos, ao contrário das convencionais ofertas homogêneas.”

O freiriano apelo à coerência era traído pelos fariseus da pedagogia, que se convertiam em obstáculos à humanização da aprendizagem e da educação. E o vosso avô tornara-se um incômodo por questionar o dever de obediência hierárquica e por afirmar que o aquilo que teoricistas chamavam “educação democrática e inovadora” jamais seria possível no contexto de escolas de sala de aula. 

Quem teria educado os combatentes palestinianos? Que educação teriam recebido os combatentes israelitas? Por que se educava bonsais humanos? Para quando a humanização da Educação? Até quando vigoraria um sistema produtor de seres (de)humanos violentos, racistas, misóginos, corruptos?

Até quando permaneceríamos sozinhos em sala de aula?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXIX)

Trancoso, 16 de outubro de 2043

No Ano da Graça de 2023, no dia de aniversário da Vovó Ludi, fomos até à periferia da cidade grande, conhecer as “Formiguinhas”. Voltaríamos no ano seguinte, para colher ensinamento junto de crianças com brilho nos olhos e educadores com ternura a rodos. 

Al, como em outros lugares onde se semeia Paz, as “formiguinhas” Ana, Bete, Fabi, Juju, Caina e um punhado de dedicadas voluntárias vão fazendo possíveis e impossíveis, para mitigar o sofrimento dessa gente brasileira, como nós, que nos faziam lembrar aquela música do Chico:

“Tem certos dias em que eu penso em minha gente / E sinto assim todo o meu peito se apertar / E aí me dá uma tristeza no meu peito / Feito um despeito de eu não ter como lutar / E eu que não creio, peço a Deus por minha gente / É gente humilde, que vontade de chorar.”

No outubro de dois mil e vinte e três, a guerra na Ucrânia continuava, mas saíra de cena. A televisão e a Internet transmitiam imagens do bombardeamento de um hospital. Centenas de seres humanos pereceram nessa tragédia. Consumava-se a montessoriana profecia: a educação que estimula uma competitividade é origem de todos os conflitos, dos familiares aos sociais, de todas as guerras.

Só nos primeiros dias de conflito entre israelitas e palestinianos, mais de mil crianças pereceram vítimas de bombardeamentos, inclusive, de um hospital. A insanidade crescia. De ambos os lados, surgiam ameaças de maior destruição. A escalada de violência era alimentada por superpotências bélicas, principais produtoras de instrumentos de morte. O presidente russo ameaçava com mísseis hipersônicos, se porta-aviões fossem enviados pelos Estados Unidos a Israel. 

Nesse dramático vinte e três, assistimos à gênese de uma educação geradora de Paz. 

Se eu sentia a preocupação da Vovó Ludi e a sua preocupação com o mundo que seria o da Analu, também pressentia que, entre a Ucrânia e a Palestina, entre Trancoso e São Luiz, se construía e reconstruia Paz, ao jeito do Mito de Sísifo. 

Anónimos construtores da Paz (vulgarmente conhecidos por “educadores”) faziam “trabalho de formiguinha”. Alguns ficariam para sempre anônimos, não fora o reconhecimento prestado pelos seus discípulos. Como a homenagem feita pelo amigo Antônio à sua professora:

“Sabe aquele professor(a) inesquecível e que marcou a sua vida? Eu tive a sorte dessa pessoa tão especial ter sido a minha primeira professora, a Cleusa Paiva. 

Na primeira vez que fui à escola, na Fazenda São José, no Mato Dentro, em São Luiz, há mais de 53 anos, fui com meu pai, na garupa do cavalo. Menino tímido da roça, acostumado a falar com borboletas e pássaros, eu estava muito envergonhado e tenso no primeiro dia de aula. 

Quando cheguei na escola eu fui acolhido com um especial sorriso pela inesquecível professora Cleusa, sempre calma, delicada, acolhedora, de coração generoso. 

A partir dali, mesmo com timidez e insegurança, eu me sentia apoiado por ela. Sempre que ficava tenso, eu sentia a sua mão imponderável passando em minha cabeça. Com aquele afago protetor, parecido com o da minha mãe, eu relaxava e me sentia acolhido, como se estivesse em casa. 

Até hoje a professora Cleusa ainda me inspira e me influencia. Ela fez, faz e fará parte toda a minha história de vida. Por isso lembro da significativa frase de Henry Adams: “O professor se liga à eternidade. Ele nunca sabe quando cessa a sua influência”.

Um professor inspirador nos ajuda a alçar voos e a conquistar caminhos que jamais imaginamos. Ele nos influencia, nós influenciamos os outros e transformamos o mundo.”

Bem hajam os educadores construtores da PAZ!

 

Por: José Pacheco

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXVIII)

Caraíva, 15 de outubro de 2043

Voluntariamente, “exilado” nas terras do Sul, acolhido na mátria brasileira, ainda envolvido em pedagógicos afazeres, naquela viagem aportei à Bahia. Por lá, encontrei uma empreendedora Luiza e pataxós reivindicando dignidade e espaço vital de sobrevivência. Em Trancoso, reencontrei o amigo Álvaro. Trocamos novidades, falamos de Krishnamurti, recordamos velhas andanças. Amigos da Coqueiral chegaram de Caraíva. A Caina, a Ilana, a Fada Flora e outras amigas e amigos (nunca consegui dizer “amigues”…) se juntaram a educadores provindos de muitas paragens. 

Nessa manhã, voltaríamos a falar de educação regenerativa, de educação integral, de educação humanizada, de… Educação. Parecia ter chegado o momento propício à concretização de projetos-sonhos de décadas. E, enquanto a Flora interpelava o papai sobre os mistérios da vida e a Vovó Ludi saboreava a vida, preocupada com a vida da sua neta, o canto de um sabiá acompanhou a escrita deste textinho (que achei num velho computador):

“E eis que chegou mais um “Dia do Professor”! A história de vida de um professor pode ser contada num minuto. Assim…

Quando decidi ser professor, eu sabia tudo, ou quase tudo, de eletrotecnia, mas não sabia ser professor. Eu só sabia “dar aula”. Finda a crise moral, que me assaltou – porque eu “dava aulas” magistrais, bem planificadas, e havia quem não aprendesse – adquirira consciência de que já conseguia ensinar mais de metade dos alunos, mas havia outros que não aprendiam. 

Quando sobreveio a segunda crise – a crise ética – eu pensava ter reinventado a roda da educação: o aluno já estava no centro do processo de aprendizagem. Foi então que o vosso avô compreendeu que havia produzido paliativos pedagógicos, na intenção de pretender melhorar o “sistema”. Para trás ficara um cemitério de projetos. E, com centro no professor, ou com centro no aluno, o direito à educação continuava a ser negado a muitos seres humanos.

A educação dos idos de vnte e três sobrevivia imersa numa crise centenária estatisticamente demonstrada, traduzida no pessimismo e no conformismo manifestados pela maioria dos professores. 

A comunicação social estava enxameada de referências a “práticas inovadoras”. Eis senão quando, me convidam para um evento anunciado como “revolucionário”. Nele seriam apresentados projetos chamados de “novo tipo”. Tratava-se, mais uma vez, da fútil polêmica em torno do “ensino médio” dos idos de vinte e três, com um discurso semeado de abstrações sem caução de práticas. Recupero um naco de prosa contido no manifesto pela sua revogação:

“A parte diversificada do currículo tem o objetivo de preparar para o mundo do trabalho. Ocorre que, para a maioria das profissões, é necessário fazer estágio, cursar determinados conteúdos, além de outras regulações profissionais. Nada disso é proposto na reforma. Como a quantidade de aulas de suas matérias foi reduzida, os professores pegam muito mais turmas para completar a jornada, aumentando enormemente seu cansaço, tornando inviável conhecer seus alunos.”

À semelhança de outros papeis, que encontrei no baú das velharias, este textinho reflete uma visão tacanha do que fosse currículo, que não contemplava a dimensão da subjetividade e do projeto de vida dos jovens. Nesse tempo, a “preparação para o trabalho” era objeto de “preparo” em sala de aula para profissões que, decorridos dez anos, não existiriam. E os jovens eram compelidos a serem designers de si próprios, de aprender a se adaptar a múltiplos ofícios, algo que a escola da sala de aula não propiciava. Enfim!

 

Por: José Pacheco

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXVII)

Brasília, 14 de outubro de 2043

Foi breve a minha passagem por Brasília. Mas permitiu verificar que projetos suspensos durante um desgoverno retomavam o seu rumo. Apesar dos desmandos da desgovernação, Brasília e Distrito Federal praticavam Darcy. 

A Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal dizia ter como missão proporcionar uma educação pública, gratuita e democrática, voltada à formação integral do ser humano, para que pudesse atuar como agente de construção científica, cultural e política da sociedade, assegurando a universalização do acesso à escola e da permanência com êxito no decorrer do percurso escolar de todos os estudantes. 

Teoricamente, isto é, no domínio das intenções, era essa a missão. Na prática, a secretaria apenas parcialmente a cumpria. E, dentro dela, havia quem contribuísse para que a “qualidade da escola pública” não melhorasse. 

Em 2024, chegaria o “chamamento público da “educação inovadora”. Uma portaria instituía o “Grupo de Trabalho Comunidades de Aprendizagem”, cuja finalidade era a de “elaborar proposta de Diretrizes de Política Pública para a implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública de Ensino do Distrito Federal”.

Segundo o enunciado do seu artigo terceiro, competia ao GT entre outras missões: “desenvolver a análise técnica para viabilizar a implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública do DF; desenvolver estudos de experiências e fundamentos científicos; contribuir para reconfiguração da prática educativa; elaborar e/ou adequar normativos; viabilizar, gradualmente infraestrutura adequada à implantação e implementação de Comunidades de Aprendizagem na Rede Pública de Ensino do Distrito Federal”.

Nada de novo, mas manifestação da observância, por exemplo, do pensamento de Anísio Teixeira para a educação de Brasília: ”Fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisem andar muito para alcançá-las.” E o incremento da pesquisa nas bibliotecas. E a reorganização dos tempos escolares, que garantissem a concretização do princípio da integralidade defendido no “Currículo em Movimento da Educação Básica”: “O território não se limita ao espaço geográfico, mas a abrangência dos efeitos sociais e políticos em que o indivíduo esteja inserido. O estudante não é só da professora ou da escola, e sim da rede, da Cidade”. 

O reconhecimento de que a cidade poderia constituir-se espaço educador, possibilitaria o encontro dos sujeitos históricos, criando espaços, tempos e novas oportunidades educacionais. No pressuposto de que “a formação dos indivíduos não se restringe ao espaço físico escolar”, a proposta integrava a vida comunitária, o envolvimento e a articulação de todas as instituições e associações públicas e privadas, que tornassem a educação pública, de fato, um direito subjetivo, conforme estabelecia a Constituição Federal. 

A pretensão de modernizar a educação brasileira, de a libertar das amarras de uma herança jesuítica secular e conservadora, inseria-se num amplo movimento de renovação da educação. Porém, quatro anos foram desperdiçados. E outros quatro, mercê da “sobralização” ministerial, poderiam sofrer idêntico destino. 

Para evitar o desperdício, educadores éticos se encontraram, numa tarde de outubro. Projetos como o da Comunidade de Aprendizagem do Paranoá, o do Sol Nascente, o do Mangueiral, o da 115 Norte, do Gama e de outros não-lugares ganharam novo ímpeto.  Daquilo que por lá aconteceu vos falarei em outra cartinha.  

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXVI)

Brasília, 13 de outubro de 2043

Na véspera do “Dia da Criança”, estive reunido com a Alice e os seus companheiros de projeto. Fiquei apreensivo com o seu cansaço e a decisão de manter um rumo de projeto, que se antevia desastroso. Mas, garanti-lhes disponibilidade para “correção de rota”.

Na manhã do feriado, entre a poesia da Martha, a música do Milton trazida pela Marta e a dança circular proposta pela Cláudia, o reencontro de educadores resilientes marcou o retorno a Brasília. À tarde, o amigo Isaac acolheu gente disponível para promover mudanças. Em todos os encontros, senti recetividade ao convite de retomada de projetos interrompidos.  

No dia seguinte, retomei contato com aeroportos e estradas. Pelo caminho, revi velhos vídeos. Num vídeo de meados dos anos noventa, o amigo Armindo e outros pais da equipe inicial davam testemunho do essencial: que a Ponte havia nascido pela vontade de uma comunidade e pela da iniciativa de um professor. 

Em 1976, já sabíamos que escolas não eram prédios, que eram pessoas. E que o projeto era um ato coletivo, assente em princípios. Tive necessidade de recordar aos professores da Ponte os princípios fundadores do projeto. Parecia terem sido esquecidos. Espero que a sua leitura não seja maçadora. Ei-los:

1- Uma equipa coesa e solidária e uma intencionalidade educativa claramente reconhecida e assumida por todos (alunos, pais, profissionais de educação e demais agentes educativos) são os principais ingredientes de um projeto capaz de sustentar uma ação educativa coerente e eficaz.

2- A intencionalidade educativa que serve de referencial ao projeto Fazer a Ponte orienta-se no sentido da formação de pessoas e cidadãos cada vez mais cultos, autónomos, responsáveis e solidários e democraticamente comprometidos na construção de um destino coletivo e de um projeto de sociedade que potenciem a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano.

3- A Escola não é uma mera soma de parceiros hieraticamente justapostos, recursos quase sempre precários e atividades ritualizadas – é uma formação social em interação com o meio envolvente e outras formações sociais, em que permanentemente convergem processos de mudança desejada e refletida.

4- A intencionalidade educativa do Projeto impregna coerentemente as práticas organizacionais e relacionais da Escola, que refletirão também os valores matriciais que inspiram e orientam o Projeto, a saber, os valores da autonomia, solidariedade, responsabilidade e democraticidade.

5- A Escola reconhece aos pais o direito indeclinável de escolha do projeto educativo que considerem mais apropriado à formação dos seus filhos e, simultaneamente, arroga-se o direito de propor à sociedade e aos pais interessados o projeto educativo que julgue mais adequado à formação integral dos seus alunos.

6- O Projeto Educativo, enquanto referencial de pensamento e ação de uma comunidade, que se revê em determinados princípios e objetivos educacionais, baliza, e orienta a intervenção de todos os agentes e parceiros na vida da Escola, e ilumina o posicionamento desta face à administração educativa.

Fui a Portugal, para ajudar a criar protótipos de comunidade de aprendizagem. Dado o seu exemplo de pioneirismo e face a esse enunciado de princípios, seria de esperar que Ponte fosse a primeira escola a participar nesse projeto. Propus a criação de um Grupo de Trabalho (GT), de uma Assembleia (ARCA), e a recuperação de um contrato de autonomia. Pois, como dizia o amigo Nóvoa: 

Não podemos deixar a escola bloqueada por uma pedagogia medíocre.” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXV)

Comunidade da Lagoa das Amendoeiras, 12 de outubro de 2043

No “Plano do Dia” que junto a esta cartinha faltava um “A”, mas não faltava amor. O amor-dedicação da Bruna, do Gabriel, da Francis, do Bruno. Não faltava o amor incondicional da Patrícia, que não sossegava enquanto não se conseguisse matar a fome de alimento e de afeto das crianças da Lagoa das Amendoeiras. Não faltava a amorosidade de uma Vovó Ludi e as suas pedagógicas contribuições. Ali, todos os dias eram “Dia da Criança“.

Dei por mim, relendo Ellen Key, pedagoga sueca autora da obra “O século das Crianças”, publicada no ano 1900. Ellen reivindicava liberdade para aprender, despenalizar o erro, incorporar os pais no labor educativo, suprimir castigos. Aquilo que, hoje, nos parece normal não o era, no final do século XIX. E foi por esse tempo que os estados-nação consolidaram um sistema em tudo oposto às propostas de Ellen Key.

As crianças eram consideradas homúnculos, adultos em tamanho pequeno. Nada de educação que reconhecesse a bondade do estado natural do ser humano. Ou lembrasse Goethe que, na sua obra “Os anos da aprendizagem de Wilhelm Meister”, apelava a um humanismo que elevasse o espírito da criança até dotá-la de um saber próprio e uma sólida responsabilidade. Eram raras as referências à beleza como elemento formativo, à estética como fator de redenção social, pensada por Ruskin e, William Morris.

A profecia de Ellen Key não se cumpriu. O século XX não foi o “Século da Criança”. Mais de meio século decorrido sobre o falecimento de Ellen Key, o vosso avô passou por uma insólita situação.

“A sala do senhor diretor é ali, ao fundo do corredor.” 

Segui a indicação da funcionária. Pedi para entrar.

Lá dentro, um silêncio de cemitério. Crianças encolhidas, cabeça baixa, copiando o que estava escrito no quadro negro. Régua de cinco olhos em cima da secretária, uma vara comprida encostada à parede. 

“Venha cá, colega! Já estava à sua espera. Vem se apresentar, não é? Ainda bem que chegou um homem! Já se me estava a esgotar a paciência de aturar estes burros. Do que eles precisam é de alguém que lhes arreie forte e feio, sempre que eles precisarem”. 

Fiz-lhe ver que não costumava recorrer a castigos e muito menos aos corporais.

“Não seja mole, colega, não seja mole! Você é novo, mas vá por mim, que já cá ando há trinta anos!”

A conversa descaiu para uma análise, pouco fundamentada, do insucesso:

“O colega não espere tirar grande coisa destes gandulos. Pancada é do que eles precisam. Do que eles precisam é de alguém com pedagogia musculada, que lhes arreie forte e feio, sempre que eles precisarem!”

Sarcástico, aquele diretor machista se pronunciou, exatamente como vos digo e se a memória não me trai:

“Ó colega, não sabe por que é que a educação está como está? Caro senhor, está-se mesmo a ver! Na nossa profissão só se vê mulheres. É só mulheres! Está explicado!”

Eu não queria acreditar no que ouvia, mas ouvi, claramente ouvido. Efetivamente, sempre que abria um qualquer livro que reunisse biografias dos mais insignes pedagogos dos últimos séculos, inevitavelmente deparava com referências a dez ou vinte homens e apenas duas mulheres. De Louise Michel a Ellen Key, de Irene Lisboa a Nise da Silveira, da Emília Ferrero à Magda Soares, da Maria Nilde à Amanda Alberto, a lista de ilustres educadoras era extensa, mas não totalmente revelada. 

Porquê tal ostracismo imposto a “metade do céu”? Se eu quisesse prestar-me a machismos, diria que, de Alma de Mahler à Elise Freinet e à anónima companheira de Einstein, “por detrás de um grande homem havia sempre uma grande mulher”. Ou seria o contrário?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXIV)

Brasília, 11 de outubro de 2043

Voltemos a falar de integral, integralidade, integração, começando por vos contar mais uma estória. Ouvi contá-la assim:

“Enquanto uma menina desenhava, a professora perguntou:

Que desenho é esse? O que estás a desenhar?

Estou a desenhar Deus – respondeu a menina.

Como poderás estar a desenhar Deus, se ninguém sabe como Ele é?

Quando eu acabar de desenhar, a senhora vai saber.”

Foi assim mesmo que respondemos, quando todo mundo duvidava de que fosse possível “desenhar” uma coisa chamada Escola da Ponte.

Eurico Lemos Pires foi personalidade marcante no campo da afirmação da identidade plural das ciências da educação, gestou os conceitos de escola integrada e de educação integral. O seu heterodoxo pensamento abriu caminhos para pensar a educação de diferentes modos. Investigador incansável, foi autor de livros como “Nos meandros do labirinto escolar”, no qual fez um relato sucinto da sua visita à Escola da Ponte.

Foram marcantes as imagens da sua passagem pela nossa escola. Logo à chegada, surpreendeu-se com o fato de não haver portaria nem porteiro e por encontrar um portão aberto. Antes que eu pedisse a uma criança que lhe mostrasse a escola, pediu-me que o “deixasse deambular pelos lugares onde houvesse crianças”. Acedi ao pedido.

A meio da manhã, fui encontrá-lo, sentado junto de uma mesa onde crianças preparavam o “guarda-roupa” de uma peça de teatro. As crianças tinham colado fitas de todas as cores nos escassos cabelos brancos do “amigo Eurico”. Paciente e feliz, o mestre com elas conversava. 

Não quis interromper o diálogo. Discretamente, me retirei dali. Só no início da tarde, quando o mestre Eurico parou o seu deambular, consegui chegar à fala com ele. Visivelmente comovido, me disse:

“Professor Pacheco, durante a minha já longa vida, visitei muitas escolas. Apenas nesta me foi permitido estar com crianças, brincar com elas”.

O Mestre Eurico manifestou agrado por ver como era valorizada a integração comunitária da escola, entendida esta como nodo de uma rede de aprendizagem propiciadora de desenvolvimento local, espaço em que se fomentava a liberdade de pensamento e de expressão, onde todos eram estimulados para a descoberta, para o questionamento e a resolução de problemas, onde a educação integral passava do teor do projeto da escola para a prática quotidiana.

Naquele tempo, no enunciado dos projetos objetivos como este era anunciado: 

“Promover educação integral do estudante, seu pleno desenvolvimento como pessoa”. 

Eram meritórias as intenções, como a de “assumir a educação como meio de promover a justiça social e a igualdade de oportunidades”. Mas, como poderia uma escola fundada no paradigma da instrução assegurar uma prática efetiva de “educação integral”?

No Vale de Santiago, no Alentejo profundo, a Cristina reuniu famílias, professores e lideranças locais, num encontro fundador de comunidade. Numa velha pen drive, consegui reaver o documento que a Cristina enviou para o Agrupamento de Escolas:

“É necessário humanizar a educação, concretizar educação integral. A modernidade está nos tornando individualistas, portanto, precisamos aprender mais sobre convivência e diálogo, sendo oportuno falar de novas construções sociais.”

Havia quem “desenhasse” possíveis futuros. também havia quem os destruísse. Tristes tempos foram aqueles do início dos anos vinte! A Cristina viu ser destruído o seu projeto. Mas não desistiu. Como diria o Aleixo:

“Quem prende a água que corre / é por si próprio enganado / o ribeirinho não morre / vai correr por outro lado.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXXIII)

Cubatão, 10 de outubro de 2043

Como vos disse, na breve passagem por Cubatão herdei uma dose suplementar de esperança. Reparai que falo de esperança e não de otimismo. Como diria o Rubem, o otimismo é da natureza do tempo, a esperança é da natureza da eternidade. Os gestos de um educador perduram por gerações, porque a esperança, ao contrário do que muita gente pensa, não é a última a morrer – a esperança nunca morre. Através dela e de ícones humanizadores, sobrevivemos, humanizamos e nos humanizamos.

Estava próximo o fim de um tempo. E o início de outros, claro! Tempos de regeneração, que me impeliam a um derradeiro esforço de andarilhagem e de afastamento de seres amados. Uma vida de contínua viagem privava o viajante de estabilidade afetiva e emocional. Mas, “abelha fazendo mel
vale o tempo que não voou”.

De Cubatão para São Paulo e dali para Brasília, Porto Seguro, ao encontro de educadores éticos. Como aqueles que me acolheram em Cubatão e a quem devo a “dose suplementar de esperança”: o Luís, a Karen, a Lidiane, o Guilherme, um sem fim de nomes de anónimos construtores de futuros. Porque os projetos humanos dos idos de vinte, como não me cansei de repetir, requeriam o abandono de estereótipos e preconceitos, exigiam que se transformasse uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual desse oportunidades de ser e de aprender, que praticasse “educação integral”. 

Anísio Teixeira, a maior referência do “Currículo em Movimento” concebia a ideia de uma educação integral, onde se acolhesse toda a amplitude do ser e se usasse como matéria-prima a própria vida: 

Se o nosso interesse é pela vida, aprender significa adquirir um novo modo de agir. Aprende-se através da reconstrução da experiência. Toda aprendizagem deve ser integrada à vida, ou seja, adquirida em uma experiência real de vida”.

O ser humano aprende quando tem um projeto de vida e o realiza nas dimensões cognitiva, afetiva, emocional, ética… é sempre um projeto de vida com os outros, numa escola em transformação, como Morin aconselhava: 

Temos a necessidade de reformar radicalmente o modelo de ensino nas universidades e escolas. O conhecimento está desintegrado em fragmentos disjuntos no interior das disciplinas, que não estão interligadas entre si e entre as quais não existe diálogo. O modelo atual leva a negligenciar a formação integral e não prepara os alunos para mais tarde enfrentarem o imprevisto e a mudança”

Acompanhei o cotidiano de escolas que se preocupavam com a formação integral dos jovens e cujos professores se assumiram responsáveis por aquilo que fizeram de si, a partir do que deles a vida (e a escola) havia feito. 

Infelizmente, subsistia a crença da transferência linear do conhecimento em sala de aula. Uma cultura sedimentada ao longo de quase três séculos reproduzia-se a si própria, desde a universidade ao chão das escolas, impedindo a emergência de novas práticas e mercantilizando a Escola Pública. Numa breve análise de conteúdo de propaganda enganosa, identifiquei os termos frequentemente usados e o que mais me irritava era o uso e abuso da expressão “educação integral”. 

Os mercadores não faziam a mínima ideia do que isso fosse, mas logravam vender “poções mágicas”. No auge do estertor do instrucionismo, aprendizes de feiticeiro da educação lucravam com as preocupações de professores e pais, explorando a ingenuidade pedagógica da administração educacional.

Felizmente, secretarias de educação, como a de Cubatão, se abriam a novos tempos, a uma nova Educação. E para o vosso avô chegava o tempo de ir plantar árvore e olhar passarinho. 

 

Por: José Pacheco

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