Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXIV)

Herdade do Freixo do Meio, 1 de outubro de 2043

Hoje, comemoro o sexagésimo sétimo aniversário da minha chegada à Escola da Ponte. Recordo os belos seres humanos que me foram entregues, classificados como ”lixo”. Isso mesmo: foi-me pedido que “ensinasse aquela turma de lixo”. No meu livrinho ”Quando eu for Grande” descrevi deste modo aquela turma:

“Na quarta classe de 76 que a velha escola albergava, a variedade das origens sociais correspondia à variedade dos odores. O Simão exalava a suave fragrância a água de colónia. O Tó, o aroma da alfazema. O Jorge, o perfume barato do fixador que lhe domava as irreverentes melenas. Nas manhãs frias, o Arnaldo tresandava a aguardente. A maioria, criada na bouça e na rua, trazia entranhado nas pobres vestes um intenso cheiro a terra e suor que, na força do Estio, se confundia com o da decomposição dos cadáveres das ratazanas e de outros bichos que coabitavam o desvão do telhado. Mas a aparência rude escondia a doçura das almas.” 

Nos idos de vinte e três, a comemoração da chegada à Ponte decorreu num encontro com professores, diretores e pais de alunos de São João da Madeira. Ventos de mudança provindos de uma pioneira Ponte “sopravam”, afastando o fétido odor exalado por um sistema em estado de putrefação. Ali, o Adrian, a Raquel, a Rute, a Teresa, outros pais e professores e uma direção de agrupamento de escolas consciente da necessidade de mudar ousavam… mudar.

No dia seguinte, na Escola Secundária Infante Dom Henrique, reuni com a Isabel e devotadas educadoras. Talvez não por acaso, o vosso avô regressava a uma escola onde fora aluno do curso de montador eletricista. Tudo me era familiar, apesar de terem decorrido seis décadas. Também na cidade do Porto surgia um foco de mudança, fruto do entendimento entre uma competente direção de agrupamento e um grupo de batalhadoras mães – a Joana e a Maria viriam a ser elementos-chave do processo de criação da primeira turma-piloto.  

No Brasil, o primeiro de outubro de há vinte anos seria dia de eleição de conselhos tutelares. Uma autêntica guerra cultural era travada disputa por cadeiras em órgãos de defesa de crianças e adolescentes, com a intervenção de usuários de redes sociais, líderes religiosos, organizações da sociedade civil, políticos. 

A esses órgãos eram atribuídas competências várias: fiscalizar entidades que atendem crianças e adolescentes, levar ao ministério público casos de violação de direitos. A eles iríamos recorrer, para a todos garantir o direito à educação.

O amigo Vinícius fora eleito conselheiro. Era preciso apoiar os “conselhos tutelares” do Brasil e as “comissões de proteção de crianças e jovens” portuguesas.  Em todos os encontros e reuniões, eu recomendava a criação de “grupos de trabalho” locais articulados com o GT, que o Secretário de Educação aceitara acolher no Ministério de Educação. 

Em finais de outubro de 2023, estávamos a chegar ao que poderia constituir uma perigosa encruzilhada. Tínhamos tudo o que era preciso para agir. Tínhamos gente decidida, a lei, uma ciência prudente e as sábias palavras de Rubem Alves:

“Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio, porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas.”

Nos idos de vinte, os homens ainda trocavam o voo por gaiolas. Urgia desengaiolar, desaular, desguetizar, aproveitar a “abertura” ministerial e negociar a criação do Grupo de Trabalho “combinado” no Encontro das Caldas.

Estávamos “saindo da gaiola”. Faltava alçar o voo. E eu perguntava: 

“Estamos à espera de quê?”

Por: José Pacheco

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