Marinha Grande, 5 de outubro de 2043
Meio século depois…
Quando, no início do projeto da Ponte, eu modificava alguma coisa na organização do trabalho escolar, logo surgiam denúncias e apareciam os inspetores do ministério, ordenando que eu “voltasse para a sala de aula”.
Aprendendo que, se o maior aliado de um professor era outro professor e que o maior inimigo de um professor que ousasse “fazer diferente” era outro professor, eu contornava a situação, desobedecendo a “ordens superiores”. E lá vinham os costumeiros “tiques prussianos”:
“Você sabe com quem está a falar?”
Eu não sabia, nem queria saber. Mesmo sob ameaça, não desistia de tentar melhorar a minha prática. Tal como a Anna, cinquenta anos depois:
“Bons dias, Professor José Pacheco, Espero sinceramente que se encontre bem.
Quanto a mim, de baixa, ainda. O sistema apanhou-me e ruí quase por completo. Aos 56, conto ainda estar a tempo e investir com paixão com alunos, famílias, comunidade, em algo que faça mesmo sentido, nos valorize e nos faça felizes.
Como aconteceu, quando arrancou a Escola da Ponte. Mas, como se faz?
Desculpa mesmo o importunar, mas preciso muito da sua ajuda. Ideias há, agora resta saber organizar para concretizar. Grata por tudo!”
Cinquenta anos depois, o que teria mudado?
Pouco, ou nada. Apenas tinham acrescentado a velhas práticas novos paliativos digitais. Os índices de analfabetismo, de insucesso escolar mantinham-se estáveis. Aumentava o número de classes de apoio, de reforço, de recuperação, os “centros de estudo e de explicações”, e outras formas de desculpabilização curricular. O burnout crescia, um terço dos professores estava doente. O número de processos disciplinares, de expulsões de alunos, de assassinatos, de automutilação, de suicídio aumentava exponencialmente.
Alguém de bom senso recomendaria a perenização do velho “sistema”? Ele chegara ao extremo do paroxismo instrucionista. Restava aproveitar os seus restos, juntar-lhe o quanto baste neoliberal do paradigma da aprendizagem e juntar essa mistura a práticas oriundas do paradigma da comunicação. Depois, rever e transformar sistemas de relações, de gestão, de administração e direção de escolas, reinventando o “sistema”.
Mas, quase sempre, quando eu propunha a formandos que FIZESSEM algo do que eu propunha, eles enrolavam-se em conversa de treta teórica, faziam as mesmas perguntas que eu tinha escutado, há meio século. E, como não se decidiam a assumir um compromisso ético, iam a congressos, escutar a ladainha de palestrantes “especialistas em caudas de cães perdigueiros” (esta era a definição que lhes dava o saudoso Zé Paulo) e em refrigérios pedagógicos.
Era tal a imoralidade e a ausência de ética, que eu chegava ao ponto de sentir vergonha de ser professor. A acomodação e a obediência bovina a “superiores hierárquicos” me irritavam. Mais me irritava era ouvir dizer:
“Ah! Isso nós já fazemos!”
“Ah! É isso? Não preciso. Dou-me bem com o “meu método”!”
Esopo e La Fontaine descreveram essa atitude, ao longo de gerações, na “fábula da raposa e as uvas”.
“Chegando uma Raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e formosas e cobiçou-as. Começou a fazer tentativas para subir; porém, como as uvas estavam altas e a subida era íngreme, por muito que tentasse não as conseguiu alcançar. Então disse:
“Estas uvas estão muito azedas, e podem manchar-me os dentes; não quero colhê-las verdes, pois não gosto delas assim.
Dito isto, foi-se embora.”
Meio século depois, felizmente, ainda havia gente do lado saudável do “sistema” disposta a mudar de “sistema”.
Por: José Pacheco
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