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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXII)

Lisboa, 29 de setembro de 2043

Estava por Lisboa, nesse dia de há vinte anos, revivendo velhas mágoas e escassas alegrias. O meu coração estava no Sul da Vovó Ludi, a saudade me abatia e eis que deparo com algo, que doeu ainda mais fundo, na alma de um desbravador de sonhos. Visitei um lugar “sagrado” para mim. E o Hernâni compreendeu o quanto me custava manter o diálogo com dadores de aula.

Já vos repeti o quanto me custou reconhecer o engano de alma ledo e cego do início do exercício da profissão de professor. Nessa altura, eu sabia tudo o que precisava saber para “dar aula” a turmas do “ensino secundário”. Eu sabia tudo, ou quase tudo, de eletrotecnia, mas não sabia ser professor. Eu sabia “dar aula” e as dava de modo magitral. Ao ponto de inspetores recomendarem aos estagiários o assistir à minhas aulas. 

Eu via os colegas do “secundário”, tranquilamente, “dando aula”, mas eu sentia o incómodo de professor primário que, também, dava aula, mas adquirindo consciência de que não conseguia ensinar nem metade dos alunos. Eu “dava aulas” magistrais, bem planificadas… e havia quem não aprendesse. 

Pensei em passar do “primário” para o “secundário”, preparando jovens para o assalto à universidade. Não o fiz, por respeito a mim mesmo e pelo respeito devido aos meus pequeninos alunos.

Queridos netos, eu estava no início de uma carreira, assolado por um sentimento de impotência. Com estudo e a ajuda de colegas de profissão, me mantive professor, desobedecendo a “superiores hierárquicos”, arrostanndo com a incompreensão de outros professores, a indiferença de “doutores” e o assédio moral de “superiores”. A duras penas me fiz professor e ajudei outros porfessores a sê-lo, inspirado no exemplo de educadores da “Escola Nova”.

Alguém escreveu (não me lembro onde li…) que os engenheiros que conceberam as câmaras de gás e os médicos que coordenavam o genocídio nos campos da morte nazis foram “bons alunos” do ensino dito “tradicional” e só “cumpriam ordens”. Janusz Korszak, que foi professor e pereceu nas garras da besta nazi, escreveu: 

“A escola é um pobre comércio de medos e ameaças, boutique de bugigangas morais, botequim onde é servida uma ciência desnaturada, que intimida, confunde e entorpece.” 

Os “fundamentalistas” da escola “tradicional” revelavam o seu ódio à diferença. Aqueles que, no seu tempo, se aperceberam do cheiro nauseabundo da decomposição da escola “tradicional” e ousaram reinventá-la acabaram vítimas da ignorância e da maldade. Pestalozzi foi humilhado. Tolstoi assistiu impotente ao encerramento da sua escola, por ordem do czar. Ferrer, que acreditava ser possível colocar humanidade no ato de aprender e ensinar, foi perseguido e executado, no dealbar do século XX. Anísio foi assassinado. O Estado Novo não partilhava os ideais da “Escola Oficina” e Adolfo Lima conheceu as agruras do Tarrafal. 

No final de setembro, o Hernâni e o Luís levaram-me até à escola da Voz do Operário. Era enorme a expectativa. Esperava reencontrar naquele lugar sagrado o espírito escolanovista. Não vos direi o que encontrei. 

Os “dadores de aula” portugueses ignoravam a obra sublime de Faria de Vasconcelos, companheiro de Claparède, que, em 1902, fez uma conferência no Ateneu Comercial sobre “O ensino ético-social das multidões”, denunciando a “lepra do analfabetismo, que corrói o povo”. Não se reconheciam como profissionais da educação analfabetos. Desconheciam a extraordinária obra de Adolfo Lima na “Voz do Operário”, no Portugal da Primeira República. Manifestavam desconhecimento da obra de Irene Lisboa, de António Sérgio…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXXI)

Moita, 28 de setembro de 2043 

Ontem, descrevi-vos algumas das impressões colhidas num encontro que viria a marcar o rumo do projeto das Novas Construções Sociais. Após o encontro das Caldas da Rainha, o WhatsApp fervilhava de animadoras mensagens:

“Conseguiu-se o primeiro objetivo. Agora falta concretizar o tal grupo de trabalho”

“Encontrei à saída uma presidente super motivada. Peço desculpa não me ter despedido, mas tive de entrar na aula… menos à antiga, mas ainda num formato semelhante. Beijinhos.”

“Repetindo o que disse o Secretário de Estado António Leite: “Não se deixem amedrontar pela linguagem técnica e burocrática. O ministério está disponível para receber as vossas propostas. Se o Professor Zé tivesse cumprido tudo, nunca teria feito nada.” 

“Saímos com uma porta aberta! Vamos aproveitar! Voltaremos a ver-nos em novembro. Muito muito obrigada a todos pelo trabalho, dedicação e iniciativa. Haverá mais! Sementes lançadas. Vamos em frente.”

Era forte o sentimento de que havia chegado o momento de entregar em boas mãos o destino de um projeto iniciado há mais de meia centena de anos.

Sempre que vou a Portugal, não deixo de matar saudades da Moita, o destino seguinte do périplo de há vinte anos. 

Nesse prodigioso setembro, com novo alento, partimos (eu e o Luís) para o Colégio Corte Real e Escola Profissional da Moita. Por lá, confirmamos expectativas, observando a coerência entre projetos escritos e práticas efetivas. No preâmbulo ao seu projeto educativo, líamos este belo naco de prosa pedagógica:

“As escolas, na sua essência, sempre foram os locais privilegiados para se cultivar o desenvolvimento das comunidades através da partilha do saber. Muitas foram, até hoje, as experiências realizadas no nosso sistema educativo. Desde a Lei de Bases de 1986, que a diversidade da resposta e a definição dos modelos de organização escolar tem sofrido profundas e sistemáticas alterações, certamente sempre na perspectiva de construir uma escola melhor, mas sem a necessária maturidade temporal, fundamental para a consolidação dos seus projetos educativos.”

Comunidade. Senso crítico. Clareza conceptual e disponibilidade para partilhar práticas co-construídas. No site disponível na velha Internet eram evidentes tais intenções:

“É verdade, muitas vezes, nas próprias equipas pedagógicas, menorizamos a importância da nossa missão – criar! Criar com intencionalidade um impacto que se quer provocar. Sabemos que a simples conjugação de fatores, contextos e recursos não garante a criação de algo novo e o que procuramos criar – Projetos de Vida, de todas aquelas e aqueles, que connosco vivem durante um período significativo das suas vidas, os nossos jovens, mas também com todos aqueles que apoiam na co-construção, a nossa equipa.”

Fomos amavelmente rececionados pela Marta e pelo André, que nos apresentaram os seus professores, começando pelo Paulo, a Estrela, mais a estagiária Carlota e a Aparecida. Não consigo lembrar-me dos nomes de todos os educadores presentes no encontro, que decorreu durante toda a manhã. Apenas resta a recordação de um tempo de saudável convívio e muita aprendizagem. 

Após o encontro, o Christian, o Gustavo e outros estudantes, acompanhados do Mestre João, nos presentearam com requintadas iguarias, saboreadas a preceito. E na boa companhia do amigo Luís, partimos para Lisboa. Levávamos a alma lavada e sacos com belos presentes. Mas, nas papilas gustativas, só eu levava o os agradáveis eflúvios de um vinho caseiro. Por se comportar como “motorista”, o amigo Luís não o pudera beber.  

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXX)

Caldas da Rainha, 27 de setembro de 2043

Neste mesmo dia de há 20 anos, abalei do Fundão na companhia do Hernâni e da Cátia, para ir ao encontro de educadores amigos, nas Caldas da Rainha – o João, a Carla, a Dora, o Luís, a Rita, a Adélia, a Andreia e outros extraordinários seres humanos. Tive, também, ensejo de reencontrar um velho companheiro de andanças sindicais, naquele tempo investido nas funções de Secretário de Estado da Educação. 

Na “Casa Antero”, um almoço acompanhado de um tinto de excelente cepa, nos preparou para um evento que viria a marcar o rumo do projeto de humanização iniciado por pais e mães conscientes da necessidade de intervir na Escola, para que a Educação assegurada por uma efetiva Escola Pública fizesse dos seus filhos seres mais sábios e pessoas mais felizes.

Constituiu agradável surpresa a presença da senhora vereadora da educação e dos diretores dos agrupamentos do município. Num largo painel, se sucederam intervenções de natureza diversa. Escutei o discurso escutado, há vinte, trinta, quarenta anos atrás. Mas, também, se fizeram ouvir oportunas considerações sobre o atual estado da Educação.

Agradeci a iniciativa dos educadores que tornaram possível a realização do encontro e fiz votos de que fosse feito de fraterno convívio, que decorresse num ambiente de colaboração e debate construtivo. Assim foi. E algumas intervenções foram proferidas com extrema transparência, num tom “puro e duro” (expressão usada pelo representante do ministério).

Deixei por lá algumas recomendações, para que à euforia não sucedesse a inércia: que fossse redigida uma ata do encontro; que se constituísse uma ARCA (Assembleia de Redes de Comunidades de Aprendizagem) e retomados os contatos com o ministério, para que um Grupo de Traballho fosse criado e o projeto tivesse reconhecimento oficial. 

Também sugeri a integração das escolas com “turmas piloto” no projeto “Comunidades de Aprendizagem” do Ministério da Educação. E o estabelecimento de um calendário de encontros periódicos com o ministério, para aprofundamento do conceito e da prática de “comunidades de aprendizagem”.

O mestre de cerimónias leu um texto, que considero oportuno recordar, por ter dado o mote das intervenções:

“Os projetos humanos contemporâneos não se coadunam com as práticas escolares de que dispomos. Carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica baseada no saber cuidar e conviver. 

Se a modernidade tende a remeter-nos para uma ética individualista, nunca será demais falar de convivência e diálogo, abandonar estereótipos e preconceitos. 

Escola são pessoas. Os seres humanos agem em função de valores e princípios de ação, que dão origem a projetos. E a aprendizagem acontece, quando vínculos são criados numa relação pedagógica e antropagógica, numa fusão de práticas fundadas nos paradigmas da instrução, da aprendizagem e da comunicação.

A partir do que somos, daquilo que sabemos e do que sabemos fazer, é urgente 

humanizar a Educação, religando Família, Escola, Sociedade, em  comunidades e redes de aprendizagem promotoras de desenvolvimento humano sustentável.

É possível mudar e inovar, fazer uma Escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de aprender a ser, a conhecer e a conviver;

É preciso substituir um obsoleto sistema de ensino por uma nova construção social de aprendizagem. na qual se a todos se assegure o direito à educação, a uma educação, efetivamente, integral.”

A viagem até Lisboa e o saborear de uma saborosa sopinha confecionada pela Filipa foram o complemento de um dia semeado de bons augúrios. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXIX)

Pampilhosa da Serra, 26 de setembro de 2043

Fora de Portugal há cerca de 20 anos, ao meu país voltei, amiúde, a convite de educadores, pais de alunos, autarcas empresários, diretores. Por toda a parte, unia, reunia, propunha diálogo a professores renitentes ou desistentes.  Só não conseguia demover dadores de aula do seu absurdo labor. 

Desisti de porfiar no insano apelo a uma decisão ética, mas não desisti de um incansável peregrinar, à procura de professores vivos. Abalei de Alentejo profundo para terras da Beira Interior. 

Boff dizia que a crise que nos afetava não era uma mera crise cíclica e que uma nova ordem mundial se mostrava necessária, um novo modo de habitar a Terra. 

Para “um novo habitar a Terra”, preciso seria uma nova Educação, como aquela que o Professor Patrício deixara em Campo Maior.

Em terras do Atlântico Sul, o Mestre Pedro também não desistia da denúncia das “cortinas de fumaça, para encobrir uma política educacional incrivelmente perversa”:

“Aprendizagem quase não existe, não levamos quase nada para a vida da escola  e a série histórica do Ideb, desde 1995, escancara um sistema inepto, para não dizer inútil, sem perspectiva de mudança. A miséria educacional atravessa os governos, independentemente da ideologia, porque o instrucionismo é a postura padrão, hoje globalizada, também acolhida oficialmente no PISA: o sistema é tipicamente de “ensino”, instrução, baseada na aula copiada para ser copiada.”

Certamente, estareis recordados de vos ter dito que, quando eu era apenas um “dador de aula”, me sentir incomodado com certas atitudes dos meus alunos e de não encontrar resposta para o fato de eu dar boas aulas e haver alunos que não aprendiam. 

Pois a crise moral que me acometeu foi sanada, quando consegui compreender que o “dador de aula” tenta transmitir e… não comunica.

Os forma(ta)dores desse tempo me tinham dito que deveria fazer um planejamento anual, distribuindo matérias, temas, conteúdos por trimestre. Depois, fazer planos trimestrais, quinzenais e semanais. Mais tarde, alguém teve a infeliz ideia de dividir o ano letivo em semestres. Enfim! 

Assistindo a esses e outros disparates, comecei a duvidar da eficácia, a desconfiar da eficiência desses e de outros procedimentos e rotinas, tendo decidido planejar a aula de véspera, o mais próximo possível de dar a aula. 

Nada adiantou. A crise até se agudizou.

Até que achei a origem do meu mal-estar. Quando eu ia dar a aula, não era eu quem estava na sala de aula. Eu não estava ali. Ali, não havia autenticidade. Eu era um clown sujeito a um guião escrito na véspera. Comportava-me como um mau ator, representando um estranho papel. Havia naquele frontal anónimo um vazio constitutivo impeditivo de comunicação. 

Cedo entendi que o tipo de relação pedagógica determinava ou impedia a criação de vínculos e vivências cidadãs. Sem fazer do aluno cobaia de laboratório, introduzi a prática de currículo de subjetividade, décadas mais tarde chamado “projeto de vida”, a primeira das dimensões do que viria a ser o currículo tridimensional. 

No final dos anos noventa, a Teresa, presidente do Conselho Nacional de Educação me encarregou de redigir um “parecer” sobre uma proposta de lei. Decorrente de projetos como o da “gestão flexível”, uma “reorganização curricular se apresentava. O ministério propunha a introdução de uma disciplina de “educação para a cidadania”. Se a memória não me falha, creio que a “cidadania” seria ensinada em duas aulas semanais, como se uma educação cidadã, uma cidadania plena pudesse ser aprendida no rame-rame do “dar aula”, em sala de aula.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXVIII)

Campo Maior, 25 de setembro de 2043

Nos idos de oitenta, fui com as crianças da Ponte até Campo Maior, visitar a fábrica de Cafés Delta. Lá voltei, no setembro de 2023, a convite do Luís Sebastião, do Centro Educativo Alice Nabeiro (da Fundação Coração Delta) e de um grupo de antigos alunos do Professor Manuel Ferreira Patrício.

Como escreveu o Luís:

“Com o propósito de algum modo, usar o seu pensamento e a sua obra como pretexto para repensar a educação numa perspetiva de melhoria e mudança.

Uma das intenções deste grupo é o de realizar, sempre em setembro, mês em que o Professor Patrício nasceu e morreu, e sempre em Campo Maior, uma conferência sobre educação feita por um “autor”, no sentido de alguém com pensamento próprio e obra feita.”

No ano anterior, a primeira conferência fora proferida pelo amigo Nóvoa, a propósito da publicação do relatório da UNESCO de que tinha sido redator. 

O Luís escreveu no email-convite que o bom povo de Campo Maior “gostaria muito de que a segunda conferência fosse proferida pelo Sr. Professor”. Mesmo consciente da difícil tarefa de acrescentar algo útil ao discurso de um Mestre da dimensão de António Nóvoa, aceitei o convite. 

Quando, nos idos de vinte e três, se escrevia sobre educação integral, era comum o teórico se “esquecer” de citar a proposta de “Escola Cultural do saudoso Professor Manuel Patrício. Também chamada de “Educação Pluridimensional”, denotava influências da Escola Nova – Claparède, Montessori, Dewey… – mas, as maiores influências teriam sido Comenius, em cuja filosofia o Professor Patrício se revia, e Leonardo Coimbra, filosósofo da educação de cariz humanista e personalista, que propõe uma nova Paideia, visando a educação integral do ser humano.

A escola era considerada numa perspectiva multidimensional. O programa educativo escolar possuia três dimensões, aproximando-se da conceção de currículo tridimensional, que ensaiamos na terceira década deste século. Cada uma das dimensões tinha um papel a desempenhar na transmissão do legado cultural e na criação cultural.

Isso intuíra nas intervenções do Professor Patrício, aquando dos trabalhos da Comissão da Reforma do Sistema Educativo (em 1984 e 1985), bem como nos encontros promovidos pelo Instituto de Inovação Educacional dos idos de noventa. 

Havia lido no site do Centro Educativo Alice Nabeiro, um lema: “Todos somos líderes das nossas ideias”. E no site da empresa, a Missão: “O nosso contínuo compromisso com a sustentabilidade é uma manifestação viva dos valores do nosso fundador. Continuar a assegurar a nossa rentabilidade económica, reduzindo o impacto ambiental e maximizando o impacto social positivo, é a nossa maior determinação. Será este o nosso futuro, materializado pela nossa estratégia de sustentabilidade global, desenhada em torno da nossa contribuição para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”. 

A intenção era a de tornar as conferências Manuel Ferreira Patrício um local e um tempo de encontro da comunidade educativa. “Que as conferências sejam presenciais e que seja possível conviver-se, debater-se e sonhar-se o futuro da educação em comunidade. Desejamos, naturalmente que se venham a tornar uma referência nacional”, acrescentava o amigo Luís.

À distância de vinte anos, poderei dizer que o sonho do Luís, da Dionísia, dos empresários e do Centro Educativo foi bem mais longe do que poderíamos imaginar. E o que vivi e senti em Campo Maior me devolveu a esperança de Portugal entrar no século XXI da Educação. Ainda hoje, nutro por aquela boa gente um profundo sentimento de gratidão.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXVII)

Elvas, 24 de setembro de 2043

A minha amiga Regina fez lembrar que, há setenta anos, o Brasil e o mundo perderam Josué de Castro. Nascido no setembro de 1908, viria a ser sepultado em Paris, no setembro de 1973. Pelo meio ficara uma vida ao serviço dos deserdados. Em “Por um mundo sem fome”, Francisco Menezes assim o descreve: 

O menino mulato cresceu bem próximo aos mangues, na região de mocambos, habitada por retirantes e caranguejos.”

Ficaram célebres os seus trabalhos sobre o problema da fome no mundo e as suas participações em organismos internacionais. Partindo de sua experiência pessoal no Nordeste brasileiro, publicou obras de indispensável leitura: “Geografia da fome”, “Geopolítica da fome”, “Sete palmos de terra e um caixão” e “Homens e caranguejos”

Nos idos de vinte, três subsistemas sociais careciam de mudança: o subsistema político, que demonstrara total inépcia na gestão de crises humanitárias; o econômico, que não mais poderia manter-se predatório; e o educacional, que estava na base de ambos.

Nesse tempo, conscientes da gravidade da situação social e escolar, educadores éticos delineavam novos rumos para a educação, adotando a proposta de Darcy de integrar três dimensões de projeto: a educação, a saúde e a cultura.

Em quatro anos de desgoverno, a saúde pública passara de precária para trágica. A fome assolava milhares de famílias brasileiras. Uma pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional concluía que 19 milhões de brasileiros passavam fome e mais de metade da população apresentava algum nível de insegurança alimentar. Era deplorável a situação vivida num Brasil, que aprendi a amar e que me atraía para memórias, que, em vão, eu tentara ignorar. 

Um sociólogo amigo facultava-me o acesso às teses de doutoramento, que ele havia orientado. Passei longas horas no seu gabinete da faculdade, lendo e relendo, tirando notas, aprendendo. Certo dia, deparei com uma tese sobre a fome, que assolara o meu bairro, durante a ditadura de Salazar.

Enquanto lia a tese, não conseguia conter o riso. 

“Por que ris?” – perguntou o meu amigo.

“Porque o que aqui está escrito não corresponde à realidade. E as conclusões estão erradas.”

O meu amigo afirmou a “excelente qualidade” da tese e eu repliquei:

“Este candidato a doutor nunca entrou na comunidade que estudou.”

“Como sabes?” – replicou.

“Porque eu nasci e morei na “Ilha dos Tigres”. Lá, não entrava polícia, nem ambulância, quanto mais alguém que não sabe o que é ter fome!”

Foi grande a surpresa do meu amigo. E perguntou:

“Zé, para saber o que é fome, é preciso passar fome?”

“Não é preciso. Mas… ajuda.”

Saramago, que também conheceu o sabor da fome, assim se pronunciou:

“Não podemos esperar que os governos façam o que não fizeram. Que nós mesmos façamos com que nossa voz seja ouvida, com a mesma ênfase com que, até o momento, temos exigido: o respeito aos direitos humanos. 

Tornemo-nos responsáveis por nossas obrigações como cidadãos, sejamos cidadãos, e o mundo talvez possa ficar um pouquinho melhor. Assumamos as responsabilidades que nos cabem.”

Se, à maneira do Ademar, eu quisesse estabelecer um metafórico paralelo com o domínio das ciências da educação, escassos eram aqueles que assumiam um compromisso ético – havia muito teoricismo e escassa produção de teoria, de conhecimento útil. 

Assim como não seria preciso passar fome para saber o que era fome, mas passar fome ajudaria a compreendê-la, também uma passagem pelo chão das escolas ajudaria os teoricistas a serem mais humildes, a reconhecerem a dimensão da sua ignorância.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXVI)

Bocaina de Minas, 23 de setembro de 2043

Apesar da Escola, havia seres humanos que conseguiam aprender a ser, no acaso (ou sincronicidade?) do encontro com professores humanizadores. Ser professor humanizador era profissão de risco. Para que conste, o vosso avô quase foi assassinado, só por ter modificado um pouco a sua prática.

No tempo em que realizávamos os “encontros de sábado”, projetos como o de Mirantão eram alvo de calúnias. E, de um dia para outro, qualquer burocrata ou politiqueiro poderia pôr ponto final na inovação. 

Contrariamente ao que palestrantes teoricistas propalavam, as escolas não eram autónomas. Se o diretor tinha dever de obediência hierárquica, cadê a autonomia da escola?

Um dos primeiros passos da criação de uma nova construção social seria o da reivindicação de autonomia. A lei o sugeria. A dignidade profissional dos professores a requeria. Foram elaborados regimentos (regulamentos, em Portugal) internos. E minutas de termos de autonomia (contratos, em Portugal) foram entregues à direção, gestão e administração das escolas. Esses documentos eram acompanhados de uma proposta de negociação, e sugeriam um processo de autonomização por etapas.

A autonomia pedagógica seria a primeira. Sustentada na lei e nas ciências da educação, criaria condições do exercício da autonomia administrativa e, mais adiante,  a financeira. 

Algumas armadilhas legalistas tivemos de enfrentar. Burocratas alegavam que a lei não tinha sido regulamentada. Mas, ao longo de décadas, nunca se tinham preocupado com a regulamentação. A pretexto de regulamentações de caráter técnico-administrativo, de inspiração instrucionista e contrárias ao espírito da Lei de Bases, recusavam dialogar, ou adiavam quanto podiam a conclusão das negociações.

A Escola da Ponte gastou vinte e oito anos para alcançar o estatuto de autonomia. Porém, os projetos de há vinte anos eram concebidos no formato de uma nova construção social e não dependiam de adiamentos ou autorizações.

Nesse tempo, quase todas as escolas funcionavam à margem da lei. Leia-se: Constituição, Lei de Bases, projetos das escolas. Nenhuma dessas leis eram cumpridas. No quadro do velho e obsoleto sistema de ensino, eram claros os indícios de ineficiência administrativa, de falsidade ideológica, de corrupção passiva ou ativa, de assédio moral e, sobretudo, de abandono intelectual.

O Ademar estabelecia um metafórico paralelo entre a atividade dos áulicos e burocratas da educação, e o naufrágio do Titanic. 

“A obsessão do luxo e da imponência embriagou os pais do Titanic, levando-os a produzir um verdadeiro monstro com pés de barro. O capitão do navio nada fez para prevenir o naufrágio. Ele fora avisado várias vezes da presença dos icebergs e do perigo que eles podiam representar para a segurança do navio. Ainda assim, persistiu na rota suicida e, não contente com isso, na madrugada fatídica, deu ordem para acelerar a velocidade do navio. 

A colisão era inevitável e a tragédia humana também. O navio partira com um número extremamente reduzido de botes salva-vidas. Uma patética sucessão de erros, ilusões e imprevidências escreveu o destino trágico do Titanic e das mil e quinhentas pessoas (quase todos os passageiros que viajavam em segunda e terceira classe) que, nessa madrugada de abril de 1912, perderam a vida, algures, no Atlântico.”

O “sistema” entrara numa “rota suicida”. Os “botes salva-vidas do “sistema” (leia-se: reformas e projetos paliativos) tinam sido esgotados. E o número de vítimas do “sistema” não se contava por milhares, mas por milhões.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXV)

Mirantão, 22 de setembro de 2043

O meu saudoso amigo Rodrigues Brandão compôs “Haicais para receber a Primavera”, celebrando a chegada da Primavera da Educação, consciente de que ainda ia terminando um longo e pesaroso Inverno Educacional. 

Era indisfarçável a podridão pedagógica acumulada, ao longo de séculos. O assédio moral e múltiplas ameaças eram sinais evidentes do desespero de áulicos e burocratas. Atento ao descalabro, o amigo Ademar denunciava os habituais disfarces e paliativos, metaforizava o fim de um obsoleto e pérfido sistema de ensinagem.  

“Na madrugada do naufrágio do Titanic, o quinteto liderado por Wallace Hartley só parou de tocar trinta minutos antes de o luxuoso navio se afundar. Os músicos sabiam que da sua actuação dependia, em larga medida, o controlo do pânico dos passageiros. Um dos sobreviventes do naufrágio contou mais tarde aos jornais que ao mesmo tempo que as águas tumultuosas do oceano se insinuavam discretamente sobre os mais recônditos escaninhos do Titanic, preparando o golpe fatal, a orquestra ia tocando “músicas muito agradáveis” para distrair os condenados à morte, as cerca de mil e quinhentas pessoas (incluindo os tripulantes) que não teriam lugar nos botes salva-vidas e pereceriam daí a pouco afogadas.

A iminência da tragédia não desviou os músicos do cumprimento das suas obrigações profissionais. Eles tinham de tocar até à morte como sempre tinham tocado, desejavelmente, até que o navio – o mais seguro, inexpugnável e luxuoso dos transatlânticos jamais construídos – batesse no fundo do oceano. A música deveria anestesiar o pânico e o sofrimento dos que iam morrer.

O naufrágio do Titanic, sabe-se hoje, estava desde o berço inscrito no seu patético destino de magnificência.  A sua tão apregoada insubmersibilidade não passava de um estúpido e perigoso slogan propagandístico. 

O aço com que foi construído, apurou-se muito mais tarde, era de baixíssima qualidade e vários erros grosseiros de conceção, que prenunciavam a catástrofe, tinham sido cometidos pelos projetistas.”  

Talvez venha a ter oportunidade de continuar a transcrição do implacável texto do Ademar. Por hoje, limitar-me-ei a partilhar alguns dos haicais do Brandão dedicando-os à minha amiga Mariana, de Mirantão, e à sua equipe de projeto, para lhe dizer que a maldade que sobre o seu projeto se abatia, seria dissipada: 

“Canta o sabiá no pé de ipê. / É primavera, / vê!

Amanhece. / O sol do inverno / Espera a primavera.

Sozinha na folha / a palavra “só” / chorava a solidão.”

No dia da chegada da Primavera de vinte e três, recebemos esta mensagem da Mariana: 

“Boa tarde! Estamos recebendo ataques gravíssimos na Escola Municipal de Mirantão e gostaríamos de fazer uma denúncia no Ministério de Educação. 

Acabei de ser exonerada da direção da escola depois de uma reunião na Câmara dos Vereadores com ofensas a mim, às professoras e a escola, que são gravíssimas. A Janaina e o Ricardo Arantes estão com a gente, aqui na causa.”

A Mariana não estava sozinha. Nesse tempo se dizia “não largar a mão de ninguém”. A Fabi logo comentou:

“Meu Deus! Como pode? As histórias se repetem o tempo todo! É doloroso! Força para ti! E para todos de Mirantão.”

E a Mariana completou:

“O melhor é que nunca mais estaremos sós.”

Pois não. O autoritarismo de gente sem escrúpulos não poderia ficar impune. Enviei um apelo a educadores éticos:

Quem poderá ajudar a Mariana? Como a poderemos ajudar?

Netos queridos, um vasto movimento de solidariedade se formou: “SOMOS TODOS MIRANTÃO”. Dele e do que, entretanto, aconteceu, vos falarei em próximas cartas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXIV)

Butantã, 21 de setembro de 2043

Quando me preparava para rabiscar mais uma missiva e remexia no baú das velharias em busca de boas memórias, encontrei um registo de um incidente crítico de que, amanhã, vos falarei. Esse incidente reforçou a necessidade de os projetos de mudança e inovação providenciarem efetiva autonomia – à partida, apenas pedagógica e administrativa – sem a qual raramente sobrevivem. 

O “sistema” era astuto. Identificava projetos dissidentes e usava de autoritários processos, para os destruir. Era da natureza do “sistema” ser autoritário, e o Ademar o demonstra num prefácio escrito no final do século passado. 

“A estória do Titanic é uma das mais poderosas metáforas sobre o sem sentido da escola contemporânea. Também ela se acredita invulnerável e insubmersível; também ela, pressentindo o perigo, acelera o passo em direção ao abismo; também ela navega com passageiros a mais e salva-vidas a menos; também ela parece ter sacrificado a segurança da viagem à ilusão efémera do espetáculo; também ela exige as maiores provas de abnegação e subserviência aos seus profissionais; também ela, em situação de catástrofe, só está preparada para deixar salvar os passageiros que viajam em primeira classe; também ela segue, confiante e autista, a mais suicida das rotas; também ela, no berço matricial, parecia fadada para um destino glorioso.

A maior crítica que se pode fazer à escola contemporânea não é, porém, a de que ela ignora as utopias, mas antes parece acreditar na mais perversa e desumana das utopias – a utopia de uma sociedade também ela curricularizada (e programada) em que todos deveriam pensar o mesmo, sentir o mesmo, saber o mesmo, dizer o mesmo, sonhar o mesmo…

O currículo que dá sentido à escola contemporânea (ou, melhor dizendo, ao modelo dominante e totalitário de escola contemporânea) não é mais do que um imenso e complexo programa de produção em série de pinóquios replicantes – mulheres e homens cada vez menos diferentes uns dos outros e cada vez menos autores de si próprios e dos seus destinos…

Lembro-me muitas vezes do que um dia escreveu o grande pedagogo brasileiro Rubem Alves (*): 

  1. Wright Mills, um sociólogo sábio, comparou a nossa civilização a uma galera que navega pelos mares. Nos porões estão os remadores. Remam com precisão cada vez maior. A cada novo dia recebem remos novos, mais perfeitos. 0 ritmo das remadas se acelera. Sabem tudo sobre a ciência do remar. A galera navega cada vez mais rápido. Mas, perguntados sobre o porto do destino, respondem os remadores: “0 porto não nos importa. 0 que importa é a velocidade com que navegamos.” 
  2. Wright Mills usou esta metáfora para descrever a nossa civilização por meio de uma imagem plástica: multiplicam-se os meios técnicos e científicos ao nosso dispor, que fazem com que as mudanças sejam cada vez mais rápidas; mas não temos ideia alguma de para onde navegamos. Para onde? Somente um navegador louco ou perdido navegaria sem ter ideia do para onde. 

Em relação à vida da sociedade, ela contém a busca de uma utopia. Utopia, na linguagem comum, é usada como sonho impossível de ser realizado. Mas não é isso. Utopia é um ponto inatingível que indica uma direção. Mário Quintana explicou a utopia com um verso de sabor pitanga: 

“Se as coisas são inatingíveis… ora!/Não é motivo para não querê-las …/Que tristes os caminhos, se não fora/A mágica presença das estrelas!” 

Amanhã, vos falarei de “tristes caminhos” e da presença das estrelas.

(*) (Rubem Alves, O Homem Deve Reencontrar o Paraíso, in Por uma Educação Romântica – Brevíssimos Exercícios de Imortalidade)

 

Por: José Pacheco

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