Lisboa, 29 de setembro de 2043
Estava por Lisboa, nesse dia de há vinte anos, revivendo velhas mágoas e escassas alegrias. O meu coração estava no Sul da Vovó Ludi, a saudade me abatia e eis que deparo com algo, que doeu ainda mais fundo, na alma de um desbravador de sonhos. Visitei um lugar “sagrado” para mim. E o Hernâni compreendeu o quanto me custava manter o diálogo com dadores de aula.
Já vos repeti o quanto me custou reconhecer o engano de alma ledo e cego do início do exercício da profissão de professor. Nessa altura, eu sabia tudo o que precisava saber para “dar aula” a turmas do “ensino secundário”. Eu sabia tudo, ou quase tudo, de eletrotecnia, mas não sabia ser professor. Eu sabia “dar aula” e as dava de modo magitral. Ao ponto de inspetores recomendarem aos estagiários o assistir à minhas aulas.
Eu via os colegas do “secundário”, tranquilamente, “dando aula”, mas eu sentia o incómodo de professor primário que, também, dava aula, mas adquirindo consciência de que não conseguia ensinar nem metade dos alunos. Eu “dava aulas” magistrais, bem planificadas… e havia quem não aprendesse.
Pensei em passar do “primário” para o “secundário”, preparando jovens para o assalto à universidade. Não o fiz, por respeito a mim mesmo e pelo respeito devido aos meus pequeninos alunos.
Queridos netos, eu estava no início de uma carreira, assolado por um sentimento de impotência. Com estudo e a ajuda de colegas de profissão, me mantive professor, desobedecendo a “superiores hierárquicos”, arrostanndo com a incompreensão de outros professores, a indiferença de “doutores” e o assédio moral de “superiores”. A duras penas me fiz professor e ajudei outros porfessores a sê-lo, inspirado no exemplo de educadores da “Escola Nova”.
Alguém escreveu (não me lembro onde li…) que os engenheiros que conceberam as câmaras de gás e os médicos que coordenavam o genocídio nos campos da morte nazis foram “bons alunos” do ensino dito “tradicional” e só “cumpriam ordens”. Janusz Korszak, que foi professor e pereceu nas garras da besta nazi, escreveu:
“A escola é um pobre comércio de medos e ameaças, boutique de bugigangas morais, botequim onde é servida uma ciência desnaturada, que intimida, confunde e entorpece.”
Os “fundamentalistas” da escola “tradicional” revelavam o seu ódio à diferença. Aqueles que, no seu tempo, se aperceberam do cheiro nauseabundo da decomposição da escola “tradicional” e ousaram reinventá-la acabaram vítimas da ignorância e da maldade. Pestalozzi foi humilhado. Tolstoi assistiu impotente ao encerramento da sua escola, por ordem do czar. Ferrer, que acreditava ser possível colocar humanidade no ato de aprender e ensinar, foi perseguido e executado, no dealbar do século XX. Anísio foi assassinado. O Estado Novo não partilhava os ideais da “Escola Oficina” e Adolfo Lima conheceu as agruras do Tarrafal.
No final de setembro, o Hernâni e o Luís levaram-me até à escola da Voz do Operário. Era enorme a expectativa. Esperava reencontrar naquele lugar sagrado o espírito escolanovista. Não vos direi o que encontrei.
Os “dadores de aula” portugueses ignoravam a obra sublime de Faria de Vasconcelos, companheiro de Claparède, que, em 1902, fez uma conferência no Ateneu Comercial sobre “O ensino ético-social das multidões”, denunciando a “lepra do analfabetismo, que corrói o povo”. Não se reconheciam como profissionais da educação analfabetos. Desconheciam a extraordinária obra de Adolfo Lima na “Voz do Operário”, no Portugal da Primeira República. Manifestavam desconhecimento da obra de Irene Lisboa, de António Sérgio…
Por: José Pacheco