Murches, 11 de novembro de 2043
Decorria o mês de novembro de há vinte anos, num Verão de São Martinho mortiço, com suspeitas de corrupção em órgãos do Governo e no rame-rame da rotineira escola, cenário habitual num país-jardim à beira-mar plantado.
Voltei a Lisboa na agradável companhia da Rita, do Pedro, da Paula Cainço e da Paula Gaspar. Mais uma vez, encontrei abrigo e calor humano na casa dos meus amigos António e Elisa, com um chazinho bem quente a acompanhar.
Na manhã seguinte, voltaria ao Brasil, levando na bagagem boas recordações. Nos encontros de amigos, partíramos daquilo que nos era familiar, próximo, para um exercício de memória e uma pergunta: o que gostaríamos de ser, quando fôssemos crianças?
A ação de formação de que, ontem, vos falei, decorria “ativa, diversificada e socializadora”. Conversamos sobre a escola que foi a nossa escola. Ali, não havia objetos a capacitar, mas sujeitos de uma aprendizagem “integradora e significativa”, braço erguido, pedindo a palavra, emocionadas evocações de educadores que, em tempos idos, mudando de escola. deixaram projetos pelo caminho… e os retomavam. Com a Vovó Ludi, eles eram a última oportunidade de acreditar. Eu esperava que acreditassem, que fossem a geração do agir, do fazer.
Na sala de aula da universidade, a Maria ensaiava novos modos de ensinar e aprender. E escutava:
“Então, a professora não vai dar aula?
“No século XXI, já não se dá aula, caro João” – respondia a Maria.
Naquele dia de formação em equipe, a aprendizagem acontecia, sempre que se comunicava, para partilhar aprendizagens.
“O que aprendemos? O que iremos fazer com isso?” – A Paula redescobria em Nise da Silveira a origem da arteterapia, as razões da incompatibilidade com processos da sociedade psiquiátrica. culminados na lobotomia e nos maus-tratos de Barbacena, na prisão de Nise às ordens de Vargas, quando uma enfermeira a denunciou.
Em Leiria, educadores portugueses falavam do Engenho de Dentro da década de trinta, de uma carta a Carl Jung, da criação de um museu de imagens do inconsciente, dos feitos de Nise. Na outra margem do Atlântico, educadores portugueses citavam Nise:
“Todo mundo tem um pouco de loucura.”
“Não sou filantrópica. Sou curiosa do abismo.”
E agradeciam:
“Muito obrigado! Não conhecíamos Nise da Silveira.”
Falava-se de “inventários de valores, de círculos de vizinhança, de “parcerias” (escapando à estapafúrdia moda do uso de anglicanismos como “stakeholder”), se descrevia o modo como se fizera levantamentos de potencial educativo das comunidades.
“Colocamos a “lupa” à volta das nossas moradas, reunimos no círculo de proximidade, investimos numa escola próxima, reunimos na Mata de Marrazes, toda a manhã a conversar, ideias a borbulhar. O que poderíamos fazer pelos nossos filhos e pelos filhos dos outros?”
“Descobrimos que temos vizinhos. A minha vizinha do lado tinha um abacateiro. O marido o tinha plantado. “Não sei para que serve” – disse a minha vizinha. Eu peguei num saco e o enchi de abacates.”
“Olá! Criámos um logo, para sentirmos a alegria da tribo. Que tal? Pusemos no ChatGPT os nossos valores… saiu uma pintura” – junto a esta cartinha a “pintura”, que guardei, durante vinte anos, junto de outras maravilhas que o encontro de Leiria me ofereceu – “Definimos os valores da Semente e, agora, estamos a trabalhar com a comunidade, em círculos de vizinhança.
Criamos um site. “Fomos à Biblioteca Jose Saramago. Saímos de lá às dez da noite. Perguntaram-me “Por que estais ali tantas horas?”
“Porque estamos juntos. Porque ainda há meninos com olhos brilhantes.”
Por: José Pacheco
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