Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXV)

Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2043

Perante o entusiasmo dos meus jovens alunos do curso de formação inicial de professores, pedia que, às primeiras contrariedades no exercício da profissão, não transformassem o idealismo em pragmatismo e o pragmatismo em cinismo. Dizia-lhes que, mal pressentissem que poderiam vir a refugiar-se no “dar aulas e manter a disciplina”, mudassem logo de profissão. Só desse modo preservariam a sua sanidade mental e a das crianças e jovens que lhes coubessem em sorte educar. 

Aqueles a quem os acasos da vida conferiram coerência defrontaram obstáculos e reveses, que as escolas não são bem aquilo que vem nos livros. 

A partir de meados dos anos noventa, passei a receber telefonemas, cartas e mensagens por uma Internet, que nesse tempo nascia.

Quase todas as missivas me falavam dos seus primeiros dias como professores. Outras mensagens eram restos de uma esperança dissolvida no ácido da vida real. Havia algumas em que pediam conselho, davam notícia de sucessos e, quase sempre, de insucessos. 

Em finais do século passado, um jovem aluno, um dos mais promissores entre aqueles que por mim passaram, isto escreveu:

 “Pois é, tudo tem uma razão de ser e mesmo a minha demora em responder tem razão de ser. As coisas aqui estão muito piores, infelizmente. Uma colega nossa, que está a dar apoio, tem que olhar várias vezes para o lado, porque, dentro das salas onde ela dá apoio, os profes batem nas crianças. 

Temos que continuar um bocado discretos para não termos problemas no final do ano. Toda a gente é muito simpática, mas só consegue ver um tipo de trabalho à frente dos olhos: aquele que dá pouco trabalho (pensam eles). 

Logo no início do ano pude verificar algumas coisas que me deixaram muito desagradado. Os miúdos sentam-se todos virados para a frente em carteiras individuais e começa-se o ano com três semanas de grafismos. 

Não interessa se existem miúdos repetentes dentro da sala de aula. Sugeri que se fizesse trabalho diferenciado e a resposta foi: 

“Nem pense numa coisa dessas! Você é jovem, utópico, mas isso passa… Faça o mesmo trabalho com todos.”

Se falo em criar uma associação de pais: 

“Nem pense nisso! Na escola do Manuel deu muito mau resultado. Fazemos uma reunião com eles no início do ano, faz-se duas ou três festinhas e chega.”

Falo em marcar reuniões com os pais: 

“Não dá muito jeito, porque a Dona Filomena é que fica com a chave da escola. E a senhora diretora também não gosta muito de reuniões. Sabe como é…”

Logo em setembro, dizem-me: 

“Lá para o Natal, o colega coloca os alunos que precisam de apoio numa lista, porque, assim, depois, tem desculpa para os reprovar, no final do ano.”

O que custa mais é mesmo ter de trabalhar numa sala de aula, onde nada se pode fazer de diferente. O que fazer, então? 

Tendo em conta que todos os princípios pedagógicos, que adquiri ao longo destes últimos anos contrariam frontalmente tudo aquilo que era obrigado a fazer, decidi embora. “Ter a lucidez para dar conta e ir-me embora”, lembra-se?

O ânimo com que ia para as aulas era muito pouco. Penso, sinceramente, que para trabalhar deste modo existem muitas pessoas com mais vontade e facilidade do que eu para lidar com esta situação. Sei que, se calhar, optei pela solução mais simples e que deveria ter lutado mais. Ainda tentei levantar os assuntos de várias formas, mas o resultado foi sempre o mesmo. 

Por outro lado, o que se ganha é tão pouco que se torna relativamente fácil conseguir o mesmo rendimento de outras fontes. 

Quando falou comigo, já eu tinha tomado a decisão e por isso é que fiquei meio engasgado (…)”

E a carta continuava no mesmo tom.

 

Por: José Pacheco

114total visits,1visits today

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Scroll to top