Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXXVII)

Lagoa de Piratininga, 23 de novembro de 2043

Dizia-se que o Brasil era o país com mais leis. Havia quem dissesse serem elas mais de milhão. O país da Educação não era pobre em regulamentação. Infelizmente, a regulamentação da lei-mãe manifestava caráter técnico-instrumental, continha laivos de uma racionalidade burocrática, instrucionista. Na prática e em contradição com o discurso, rejeitava-se a ideia de que as escolas poderiam constituir-se em espaços coletivos de criação de novas realidades. Por força de atavismos e vícios, todas as escolas deveriam ser “iguais à face da lei”. E até onde nos conduziria essa pretensa “igualdade”?

Na busca de “resultados”, escolas particulares antecipavam as férias, “para que os professores pudessem ser preparados para as aulas online”. Empresas de ensinagem praticavam um marketing agressivo, explorando a fragilidade do sistema público de ensino, tirando partido das dificuldades sentidas pelas famílias, prometendo soluções mágicas. Inclusive, ensinando as crianças a… brincar. O asqueroso anúncio assim rezava:

“Você poderá reunir seu filho (a) e seus amigos (cada um em sua casa) através de uma sala de reunião online onde um de nossos recreadores irá comandar brincadeiras e diverti-los por 40 minutos a uma hora. É necessário que o cliente tenha um computador, tablet ou celular com boa conexão de internet.” 

Seguia-se uma lista de preços, para diferentes tempos de consumo do brincar: um preço “para 40 minutos de Recreação On-Line (até 3 crianças no mesmo local), outro para criança adicional na sala em local diferente, até no máximo 12 crianças na sala. Ou duas sessões de 30 minutos de Recreação On-Line (com intervalo de 10 minutos) etc.” O pagamento deveria ser efetivado por transferência bancária, até a data da live.

No dia em que este absurdo anúncio foi colocado na Internet, muitos educadores me dirigiram e-mails, em que manifestavam surpresa e revolta. A Carla escreveu:

“Um mundo que contrata pessoas para brincar com os filhos online!!! Quero ir embora desse planeta!!! Desculpe o desabafo.”

Respondi: 

“O desabafo é legítimo, querida amiga. Mas não vás embora do planeta, porque o planeta está carente de pessoas, de educadoras como tu.” 

A Carla não estava sozinha. Era uma “romântica conspiradora” – já vos falei deles – remando contra uma maré de insanidade, defendendo as crianças da sanha persecutória da administração educacional e dos mercadores de ensinagem. 

Talvez te recordes, Alice, das personificações, que este avô usava, para te falar de sinistras criaturas: 

“Não passou muito tempo até que os ventos trouxessem ecos de infâmia. Aves de mau agoiro ensaiavam papagaios, que são, como se sabe, aves que repetem disparates sem cuidarem de saber dos efeitos.”

Havia técnicos amorosos e críticos, na administração do sistema. Porém quando os Românticos Conspiradores colaboravam com a administração, esses técnicos eram intimidados, ameaçados pelos “papagaios” e proibidos de cooperar. 

A maioria obedeceu aos “superiores”. Outros “administrativos” assumiram uma atitude ética, consubstanciada em mensagens como esta:

“Infelizmente, não tenho boas notícias. Também puxaram meu tapete e, depois de muito sofrimento e reflexão, decidi solicitar minha saída da secretaria da educação. Percebi que estava cercada por pessoas incompetentes e más e não quero mais ficar num lugar onde eu não tenho espaço, apoio e autonomia para trabalhar. (…) Sinto-me envergonhada e triste por ver que a premência está em resolver coisas burocráticas e deixar a educação em segundo plano.”

 

Por: José Pacheco

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