Camboinhas, 22 de dezembro de 2043
Netos queridos, entre os dias 21 e 22 de dezembro, ocorre o solstício de Inverno no hemisfério norte. No hemisfério sul, o solstício é o do Verão. O dia 22 de dezembro é considerado auspicioso, simbolizando o começo de novo ciclo, e para o vosso avô, ele tem um significado especial (um dia, vos direi qual é).
Renasce a esperança de tempo novo, tempo de atos criadores, de vida gratuita e plena, tempo de percorrer caminhos novos.
Como dissera o Mia Couto:
“É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. E o que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar, a estrada permanecerá viva.”
Nos idos de vinte, os educadores sonhadores eram uma espécie em vias de extinção, até que foi chegado um “solstício educacional”, há muito anunciado. As atas da Conferência de Ministros da Educação, realizada há mais de quarenta anos rezava assim:
“Toma corpo a ideia de uma educação libertadora, que contribua para formar a consciência crítica e estimular a participação responsável do indivíduo nos processos culturais, sociais, políticos e econômicos.”
Muito antes, a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, reunida em Medellín, também registava em ata:
“A Educação em todos os seus níveis deve chegar a ser criadora, pois devemos antecipar o novo tipo de sociedade que buscamos na América Latina.”
Há vinte anos, movia-nos a esperança de que, algum dia, essas vozes fossem escutadas. Esperança, que, em seu sentido genuíno, significa fé na bondade da natureza humana. Significa confiar, acreditar ser possível ensinar (e aprender!) o diálogo, o reconhecimento da diversidade, a amorosidade, a solidariedade, a alegria, a justiça, a ética, a responsabilidade social, o respeito, a cidadania, a humanização da escola.
Utopia! – Exclamarão alguns. Mas, como nos avisava Robert Musil, a utopia era uma possibilidade que poderia efetivar-se no momento em que fossem removidas as circunstâncias que obstavam à sua realização…
Knecht, personagem criada por Herman Hesse, desejava educar uma criança que ainda não tivesse sido deformada pela Escola, instituição que se mantinha conivente com a perpetuação de um estado de desequilíbrio entre um imenso progresso técnico e a nossa sobrevivência, numa espécie de proto-história da humanidade, feita de sofrimento humano e de corações vazios, na qual ainda precisávamos de aparatos sociais como tribunais e prisões.
Era bem verdade que uma modernidade prometeica nos fazia desesperançosos, mas mantínhamos a esperança de “chegarmos vivos ao fim da vida”.
Escutemos o Mestre Agostinho, quando nos diz ser possível que as crianças sejam tão livres e desenvolvidas, que possam governar o mundo pela inteligência e imaginação, e não por saberem muita aritmética ou ortografia.
Mestre Agostinho tinha esperança de que a criança grande, que habita em cada um de nós, pudesse dar ao mundo o exemplo do que deveria ser “vida gratuita”, para que ninguém tivesse de pagar para viver e trabalhar para viver, para que “ninguém mais passasse a vida amuralhado e encerrado entre grades e renascesse para ser aquilo que deveria ser”.
Somos do tamanho dos nossos sonhos, como afirmou o Pessoa. E, no tempo em que o projeto da Escola da Ponte teve início, era a esperança que nos movia. Diziam-me que, com professores como aqueles que tínhamos, na época, não seria possível fazer avançar o projeto. Mas foi com aqueles professores, acreditando na capacidade de se transcenderem, que o projeto começou. Foi esperançosamente que ele prosperou.
Nóis pode! – diria o amigo Tião.
Por: José Pacheco
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