Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDLXIII)

Lagoa das Amendoeiras, 29 de dezembro de 2043

Netos queridos, quando 2043 se aproxima do final, quero oferecer-vos estórias e poesia, manifestar gratidão pelo tempo que possais ter dispensado à leitura destas cartinhas. Também e em particular, a uma comunidade e a uma pessoa, que, nos idos de vinte, acreditou que seria possível transformar o dizer em fazer, colocar a poesia em ato.  

Comecemos pela poesia, que dedico a essa pessoa. Os percalços e alegrias que vivemos juntos fizeram-me lembrar de pedacinhos de um poema do Pablo, que eu lia e relia nas passagens de ano de há mais de setenta anos:

“Somente quero cinco coisas, cinco raízes preferidas.

Uma é o amor sem fim.

A segunda é ver o outono. Não posso ser sem que as folhas voem e voltem à terra.

O terceiro é o grave inverno, a chuva que amei, a carícia de fogo no frio silvestre.

Em quarto lugar o verão redondo como uma melancia.

A quinta coisa são teus olhos, não quero dormir sem teus olhos, não quero ser sem que me olhes: eu mudo a primavera, para que me sigas olhando.
Amigos, isso é quanto quero. É quase nada e quase tudo.

Agora, como sempre, é cedo. Voa a luz com suas abelhas.

Me deixem só com o dia. Peço licença para nascer.”

E, agora, as estórias, exemplos de gratidão, dedicadas à Comunidade da Lagoa das Amendoeiras. 

“Uma brasileira, sobrevivente de campo de extermínio nazi, contou que, por duas vezes, esteve numa fila que a encaminhava para a câmara de gás. E que, nas duas vezes, o mesmo soldado alemão a retirou da fila. Diz um provérbio judeu que quem salva uma vida salva a humanidade. E, há vinte anos, eu não conseguia entender o genocídio perpetrado em Gaza por Israel.

Quando um empregado de um frigorífico foi inspecionar a câmara frigorífica, a porta se fechou e ele ficou preso dentro dela. Bateu na porta, gritou por socorro, mas todos haviam saído para suas casas. Já estava muito debilitado pela baixa temperatura, quando a porta se abriu e o vigia o resgatou com vida. Perguntaram ao vigia-salvador: Por que foi abrir a porta da câmara, se isso não fazia parte da sua rotina de trabalho? Ele explicou: Trabalho nesta empresa há 35 anos, vejo centenas de empregados que entram e saem, todos os dias e esse é o único funcionário que me cumprimenta, ao chegar, e se despede, ao sair. Hoje, ele me disse “bom dia”, ao chegar. E não percebi que se despedisse de mim. Imaginei que poderia lhe ter acontecido algo. Por isso, o procurei e o encontrei.

Era uma vez… dois amigos: Amir e Farid. Durante uma viagem, Farid resolveu tomar um banho e foi arrastado pela correnteza do rio. Amir atirou-se no rio e o salvou. Grato, Farid ordenou a um seu escravo que escrevesse numa pedra, em letras grandes: “aqui, com risco de perder sua vida, Amir salvou o seu amigo Farid”. Mais tarde, numa discussão, Amir esbofeteou Farid. Este se aproximou da margem do rio, e escreveu na areia: “aqui, por motivos tolos, Amir esbofeteou Farid”. O escravo, que escrevera na rocha a frase anterior, ficou intrigado: Senhor, quando fostes salvo, mandastes gravar o feito numa pedra. Agora escreveis na areia a ofensa recebida. Por que agis assim? Farid olhou o escravo e respondeu: “os atos de de amor devem ser gravados na rocha, para que todos os que tiverem oportunidade de tomar conhecimento deles, procurem imitá-los. Porém, quando recebermos uma ofensa, devemos escrevê-la na areia, bem perto das águas, para que seja por elas levada.”

Talvez a gratidão devesse ser uma rotina nas nossas vidas, algo indissociável da relação humana, mas talvez ande arredada dos nossos quotidianos gestos. E se começássemos cada dia dando gracias a la vida, como faria a Violeta?

 

Por: José Pacheco

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