São Paulo, 30 de dezembro de 2043
Antes que o ano de quarenta e três termine, quero falar-vos de educadoras como a Claudia e a Edilene, coautoras de projetos como o Âncora e a Escola Aberta, seres humanos devotados à causa das crianças.
Aquilo que mais as carateriza é a competência profissional, a bondade e o desapego. Delas vos falarei nesta cartinha, sem precisar de citar, de novo, os seus nomes, pois elas são aquilo que aqui escrevo.
Escola é construção social, currículo é construção histórica e reflete ideologia. Até há pouco tempo e excetuando algumas esparsas experiências, a educação escolar era entendida apenas como treinamento no domínio cognitivo, sendo ostracizadas as dimensões do afeto, da emoção e até mesmo da espiritualidade. Ignorava-se que currículo não é apenas conteúdo, mas também múltiplas experiências proporcionadas ao aluno.
Adotemos o princípio kantiano, que nos diz que o objetivo principal da educação é o de desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele seja capaz. Apresenta-se como imperativo ético que assumamos o desapego, sem o qual, apenas fomentamos crônicas dependências naqueles com quem compartilhamos a existência. Fomentemos uma autonomia, que não é autossuficiência e solidão, mas algo que se exerce relativamente ao outro, com o outro, sem desistir do outro.
Experienciei algumas situações em que o desapego se combinou com uma autonomia, com o respeito por si próprio. A Clarice dissera que aquilo que era verdadeiramente imoral era ter desistido de si mesmo. Talvez seja mais fácil de entender essa combinação, se vos der a ler pedaços de uma carta recebida do meu amigo Jean:
“O meu pai faleceu nesta madrugada. É difícil exprimir tudo o que sinto. O meu pai viveu muito e bem, soube viver e soube morrer. Permaneceu lúcido até ao fim, e penso que não foram as dores físicas que o fizeram partir. Há cerca de um mês, ele disse-me: “Quando a vida já não pode ser melhor…”
Nos seus 87 anos, viu duas guerras mundiais e exerceu a profissão de professor. Nas últimas duas semanas de vida, já quase não se alimentava e falava com uma voz quase inaudível: “É sempre preciso partir… Sê feliz, Jean, tenta fazer o que puderes para ser feliz.”
Agora, que vejo estas palavras escritas no meu computador, parecem-me poucas. Acho que o meu pai tinha aquela capacidade de dizer coisas por trás das palavras que dizia. Peço-lhe desculpa por este desabafo. Há tanta coisa ainda cá dentro!”
É bem difícil o desapego de pessoas e momentos. Está fora de causa que não amemos aqueles seres que se vão para sempre, mas talvez essas dolorosas partidas devessem ser bem mais suaves. A morte nada tem de trágico, a não ser para quem nunca viveu.
Nas escolas ensinava-se quase tudo, exceto a saber viver. E nunca estávamos preparados para perdas e lutos.
Por mais que a frase aparente contradição, diria que desapego é compartilhamento, o trabalho em equipe. E, mesmo na ausência, se pode compartilhar – que o digam as práticas quânticas.
O mestre Dalai Lama aconselha-nos a que, nem que seja por egoísmo, façamos alguém feliz – fazer alguém feliz, mesmo à distância, é um modo de exercitar o desapego.
Ao morrer, Alexandre Magno, determinou que os tesouros conquistados fossem espalhados no caminho até seu túmulo e que suas mãos fossem deixadas balançando no ar, fora do caixão, à vista de todos.
Nascemos nus, partimos nus, nada nos pertence. Não façamos listas de livros emprestados. Tenhamos a bondade de desaparecer, deixando um rasto luminoso de palavras e gestos, a iluminar novos caminhos de novos passantes. Como o fizeram a Claudia e a Edilene.
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