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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXIX

Campo de Ourique, 4 de janeiro de 2044

Voltando a remexer em velhos baús, encontrei recortes de jornal, macróbios compact disk, pen drive empoeiradas, papéis e mais papéis… E lá estava uma carta-convite, que fiz circular, entre o Natal de vinte e três e o Dia de Reis de vinte e quatro. Vo-la dou a conhecer:

“Em nome de um coletivo, envio convite para participação numa prática de formação transformadora, aquilo que a Unesco prconiza no documento “Educação do Futuro”, mas uma inovação concretizada no presente.

Poderemos conversar, para esclarecer eventuais dúvidas, no encontro a realizar pelas 11h00 (horário de Brasília) do dia 6 de janeiro de 2024, neste endereço:

https://meet.google.com/jrj-bfyu-hji

O projeto “Novas Construções Sociais de Aprendizagem” foi concebido com base no conhecimento e prática acumulados, ao longo de mais de meio século, em escolas de comprovada excelência acadêmica e inclusão social, nomeadamente, a Escola da Ponte, o Projeto Âncora e a Escola Aberta de São Paulo.

Venho ajudando a desenvolver práxis reconhecidas como inovadoras, pelos princípios que preconizam. A intencionalidade educativa, que serve de referencial ao projeto “Fazer a Ponte”, orienta-se no sentido da formação de pessoas e cidadãos cada vez mais cultos, autónomos, responsáveis e solidários, democraticamente comprometidos na construção de um destino coletivo e de um projeto de sociedade, que potenciem a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano.

As escolas carecem de um novo sistema ético, de uma matriz axiológica clara e princípios baseados no saber cuidar e conviver, pois os projetos humanos contemporâneos não se coadunam com as práticas escolares de que ainda dispomos. Requerem que abandonemos estereótipos e preconceitos, exigem que se transforme uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender.

Precisamos de ir além da transmissão de informação em sala de aula e estabelecer interconexão entre o desenvolvimento emocional, o social, ir além da introdução de paliativos, num sistema de ensino que não ensina. É preciso refundar o sistema educacional, a partir da sala de aula.

Não se pretende replicar o projeto “Fazer a Ponte”, embora nele se concretize uma educação cidadã e, devidamente, se cuide do socio-emocional dos alunos.

Inspirados em práticas desenvolvidadas ao longo de mais de cinquenta anos, em projetos com sustentabilidade legal e científica comprovada, durante o ano de 2024, avaliaremos anteriores iniciativas de inovação, valorizando a competência profissional dos educadores e deles cuidando.

Serão gestadas práticas de Educação Humanizadora e constituídas Redes de Comunidades de Aprendizagem. Praticando uma ciência prudente, de modo gradual e sem fazer de alunos “cobaias de laboratório”, partilharemos o saber-fazer de uma equipe, que exerce o seu munus profissional no chão de escolas e comunidades.

Ajudaremos a criar condições de a todos garantir o direito à Educação, a uma educação integral, que contemple a multidimensionalidade do ser humano.”

Era passado o tempo do amadorismo pedagógico e dos “fogos de palha” de projetos isolados, facilmente destruídos. Guiava-nos o objetivo de conceber uma nova construção social, que a todos garantisse o direito a uma educação humanizada, integral.

Queridos netos, o que, depois, se passou, vos contarei, em próximas cartinhas.

Neste “Ano da Graça” de 2044, colhei os frutos do árduo labor de milhares de educadores que, há vinte anos, tomaram uma decisão ética. E sede felizes!

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXVIII

Porto, 3 de janeiro de 2044

Muitos anos atrás, uma profunda mudança era gestada na ARCA portuguesa, e o amigo António, um atento quanto fraterno “Grilo do Pinóquio”, tecia algumas observações críticas:

“Ainda não estou satisfeito com a parte final da proposta do Luís, principalmente pelo facto de saber que esta conceção de “Comunidades de Aprendizagem” é polissémica e, como tal, há várias perspetivas sobre o que isso significa (até neste grupo). Apesar disso, aqui vai o que refiz, integrando já o importante contributo da Maria (percebo muito bem o “pipeline school to prison”, mas não o explicitaria aqui).

Penso que deveríamos ter um encontro final, para fecharmos este texto, contando com todas as contribuições.”

A minha amicíssima (e irmã) Maria aceitava o repto de um coletivo, retomando o libertário impulso, que sempre a caraterizou:

“Lá estarei, porque penso ser importante reunirmos. É bom fazer tudo com calma, cuidado e coletivamente.

Deixo aqui as alterações que proponho. Adicionei ao documento que o Luís criou as alterações do Zé, do António e as minhas. Isto de emails dentro de emails é meio aflitivo para mim. Mas aqui vai, com a “inclusão” do pedido de alargar a abrangência do Decreto 54/2018, algo que sonho concretizar, que tanto tenho vivenciado na pele e estudado.

Muito obrigada, Luís, por seres o Luís. Muito obrigada, António, por seres o António. Muito obrigada, José, por seres o José. Acrescento o que eu gostaria que estivesse incluído.

Embora seja uma espécie de minhoca que come livros, a minha língua materna é o inglês. Por isso, não me adapto muito bem aos formalismos estranhos e burocráticos que a nossa legislação, documentação, e academia produzem. Não sei se está bem escrito o que escrevi. Peço que alterem, se acharem bem.

O que queria mesmo era que se mencionasse o acolhimento, os conceitos de megadiversidade, onde a psicodiversidade, a neurodiversidade, a diversidade cultural, social, e funcional se enquadram. E, também, o “pipline school to prison” (não sei como se diz em português).

Por vezes, as coisas têm de ser feitas com pedras. Por vezes, com papelada. Por vezes, com amor. Por vezes, com o que tiver de ser. O essencial, neste momento, como dizem o Bruno Peixe e o José Neves é considerar “o tempo de recusar liminarmente o pressuposto. De uma oposição entre individual e coletivo”.

Vamos pedir que nos deixem laborar, agir e cuidar de nós e dos outros.”

A Maria e aqueles “outros” nos diziam que a ação persegue o sonho, aquilo que Xavier Montserrat trabalhava como conceito: o “horizonte vertical”:

“Só há motivação à sombra de uma visão do futuro. No espaço e tempo dos indivíduos, o futuro deve poder ser imaginado ou sonhado. O conceito de horizonte vertical exprime a imagem de uma visão dinâmica e motivadora do futuro.

Esta figura simbólica resulta do cruzamento de um eixo horizontal, que traduz a capacidade de ver longe, de se projetar na procura de fins a atingir e um eixo vertical, que representa uma progressão e um desenvolvimento em busca de um grau elevado de bom desempenho.

A ideia do futuro é necessária. Ela condiciona a capacidade de “estar em projeto”, passando de um «horizonte invisível» a uma visão do futuro. O registo da antecipação determina o da ação. O conceito de horizonte vertical exprime a aspiração legítima para se projetar e mobilizar. A visão e a compreensão do projeto da organização permitem identificar o alvo coletivo e mobilizar energias.”

Num mundo de racionalidade crescente, a antecipação, a previsão e a prospetiva constituem ferramentas para reduzir a incerteza face ao futuro.

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXVII

Foz do Iguaçu, 2 de janeiro de 2044

À entrada de mais um ano pleno de oportunidades, me recordei de um poema-canção de Brell, que, nos idos de sessenta, foi para o vosso avô um “guia”. Vos dou a conhecer alguns versos do “Sonho Impossível” de Brell, tradução livre brasileira de “La Quête”:

‘Sonhar um sonho impossível

enfrentar o inimigo invencível

abraçar a angústia insuportável

pisar onde os bravos não ousam.

Reparar o mal irreparável

amar um casto amor à distância

tentar quando as forças se esvaem

alcançar a estrela inatingível

essa é a minha busca, a busca daquela estrela

não importa o desespero, o quão longe

lutar pelo que é justo

sem perguntar ou questionar

estar disposto ao inferno por uma causa celestial’.

Se tiverdes acesso à velhinha Internet, talvez ainda encontreis o canto destes versos neste vídeo: https://music.youtube.com/watch?v=g1Gf3LogQBE

Em 1922 quando visitava o Japão numa turnê de conferências, Einstein ficou hospedado no Hotel Imperial em Tóquio. Quando foi dar uma gorjeta ao carregador de malas, entregou-lhe duas notas escritas à mão, explicando como alcançar a felicidade. Em 2017, essas notas foram vendidas em leilão por mais de um milhão de dólares. Elas continham as seguintes frases:

“Uma vida simples e tranquila traz mais alegria que a busca pelo sucesso em uma inquietação constante. Onde há um desejo, há um caminho”.

Os caminhos percorridos por Einstein foram fruto do desejo, de ilimitada curiosidade, do ímpeto do questionamento. Nas afirmações de Einsteirn havia interogações. Tal como João dos Santos, o criador da Casa da Praia, que escrevera um livro, na década de 1970, que tinha por título: “Se não sabe, por que é que pergunta?”. Uma pergunta contém muito mais do que uma interrogação, traz com ela muita informação.

Mais do que um anfitrião na sua terra, o Zé Elias era um amigo dedicado e cumulava de gentileza quem o visitasse. Mostrou-nos uma escola que, vinte anos antes, eu visitara e que a Ana, com mestria, dirigia. Expandira-se, se modernizara, apenas faltava “um golpe de asa”.

Daí que, quando o Zé manifestou vontade de “investir” numa nova escola, dirigi-lhe um convite e algumas perguntas. Era o meu “maeutico” modo de fazer pensar, suscitar novas ideias e o surgimento de novas práticas.

Nos idos de setenta, muitos companheiros de profissão me invetivavam, só porque eu havia descoberto que os professores tinham mais certezas do que interrogações.

“Você tem a mania de fazer perguntas!” – diziam.

Nonagenário, continuo tão questionador quanto o é uma criança. Quando jovem professor, elaborei um roteiro de estudo, para reelaborar a minha cultura profissional, algo como um “decálogo”:

“Por que se aprende? O que se deve aprender? Quem aprende? Quem ajuda a aprender? Quando aprendo? Com quem aprendo? De que preciso para aprender? Onde poderei aprender? Como aprendo? Como sei que aprendi e o que aprendi?”

São de Carlos Castañeda estas palavras:

“Olhe, em cada caminho, com cuidado e atenção.

Então, faça a si mesmo uma pergunta: possui este caminho um coração?

Em caso afirmativo, o caminho é bom. Caso contrário, esse caminho não possui nenhum significado.”

Estávamos no dealbar de 2024. O sistema (dito) educativo era um “caminho sem coração”, e deseducava. O sistema de ensinagem era um “caminho sem significado”, e que não ensinava. Numa construção social de aprendizagem concebida entre os século XVII e XIX, quase nada de essencial se aprendia.

Os meus companheiros das ciências da educação, teoricamente, isso sabiam, bem melhor do que eu. E os interpelava:

A que se deve o vosso obsceno silêncio?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXVI

Algures, no Primeiro de Janeiro de 2044

Desta vez, recupero algumas missivas do longínquo 2024, escritas algures, em lugares por onde passei e de que perdi memória… coisa de velho. Quando a eternidade avança e se aproxima o tempo de partir, apossa-se de nós um sentimento, que o Rubem assim descrevia:

“Há também o tempo que se mede com as batidas do coração. Ao coração falta a precisão uniforme dos cronómetros. As suas batidas dançam ao ritmo da vida – e da morte. Tranquilo, de repente agita-se, dá saltos, tropeça…

A esse tempo de vida os Gregos davam o nome de Kairós – para o qual não temos correspondente. A nossa civilização tem palavras para dizer o tempo dos relógios. Mas perdeu as palavras para dizer o tempo do coração.”

No Kairós que me resta, tentarei reconstituir o conteúdo de documentos dispersos e castigados pelas intempéries do tempo em que o vosso avô ensaiava uma discreta retirada de uma longa andarilhagem. Creio que talvez eles possam interessar a algum arqueólogo da Educação, pois documentam um período áureo feito de profundas transformações.

Na madrugada do primeiro de janeiro de vinte e quatro, os amigos Luís e Filipa voltavam a Portugal, depois de lançarem flores a Iemanjá.

Apesar de já terdes atravessado o mar, para visitar o vosso avô brasileiro, certamente, não estareis familiarizados com práticas como o Candomblé e a Umbanda. Iemanjá é um orixá feminino das religiões africanas. O seu nome tem origem nos termos do idioma Iorubá (língua nígero-congolesa) “Yèyé omo ejá”, que significam “mãe cujos filhos são como peixes”. É considerada a mãe de todos os adultos e a mãe dos orixás.

Iemanjá é a divindade do rio que desagua no mar. É filha de Olokun, o orixá rei dos oceanos. O rio que representa Iemanjá e a sua história é um rio nigeriano: o Rio Ogun.

Iemanjá é a padroeira dos pescadores, e a festa popular dedicada a Iemanjá acontece no dia 2 de fevereiro. Pessoas trajadas de branco fazem uma procissão até ao templo de Iemanjá, localizado na praia do Rio Vermelho, onde deixam os presentes que vão encher os barcos que os levam para o mar.

Em Niterói, as festas em honra de Iemanjá estão relacionadas com a passagem de ano. Por isso, os amigos Luís e Filipa, trajados de branco, nos acompanharam na oferenda de flores, que esperássemos afundassem, porque aquelas que são devolvidas à praia são tidas como rejeitadas pela deusa.

O amigo Luís era um diretor de agrupamento “diferente”. Voltava a Portugal, depois de um longo “chá de aeroporto”, para retomar um projeto que viria a tornar-se conhecido por boas razões. Consciente das dificuldades que iria encontrar, não hesitava na busca de respostas para perguntas que ousava fazer.

Para Einstein, o importante era não deixar de fazer perguntas. E uma inquieta e curiosa Clarice dissera:

“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”.

Uma diretora de agrupamento com sede de protagonismo e que não perguntava reinventara o “semestre”. Muitos “agrupamentos” aderiram a essa segmentação do tempo letivo (o do Luís incluído) e eu deixava à consideração de diretores, gestores, professores e administradores do sistema as primeiras perguntas de 2024, acompanhas do pedido que ninguém respondesse com o habitual “eu acho que”. Em Educação, “achismos” não eram achados… Qualquer que fosse a resposta, ela deveria estar fundamentada na lei e nas ciências da educação.

Por que razão se dividia o ano letivo em dois semestres? Por que não em bimestres, trimestres ou quadrimestres? Por que não abandonávamos práticas cartesianas sem sentido?

Em suma: por que existia “ano letivo”?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXV

Caraíva, 31 de dezembro de 2043

Netos queridos, com 2043 quase a terminar, venho falar-vos, não de um fim, mas de um início de ano: o do ano letivo de 1976.

Há quase setenta anos, partimos para a reinvenção da Escola. Escrevi “partimos”, porque, como sabeis, um projeto educacional é um ato coletivo. Na Ponte não partimos de problemas, mas daquilo que nós éramos, para aquilo que queríamos ser, porque nós éramos… o problema.

Bem cedo compreendemos que, se reelaborássemos a nossa cultura pessoal e profissional, também estaria em nós a solução, porque um professor não ensina aquilo que diz; transmite aquilo que é. Para sabermos o que éramos, realizamos um exercício simples: escrevemos num papel os dez valores que orientavam as nossas vidas.

Três valores surgiram em todos os papéis: liberdade, solidariedade, responsabilidade. Porém, quando quisemos operacionalizar o valor “liberdade”, deparámo-nos com um obstáculo: não existe uma ciência da liberdade. Ela poderia ser ensinada, mas esse ensino não passaria por uma didática específica, mas por uma gramática que explicitasse transformações.

O conceito que encontramos desenvolvido em termos, mais ou menos, teóricos foi o de autonomia, conceito de vasto espectro semântico e com muitos apêndices: autoestima, autoconfiança, autocontrole, autodisciplina…

A autonomia se assume na relação e o conceito de singularidade lhe é bem próximo. Este se situa muito aquém da autonomia, porque o reconhecimento da singularidade consiste na aceitação das diferenças interindividuais, enquanto a autonomia é o primeiro elemento de compreensão do significado de “sujeito” como complexo individual. Ou, como diria Morin, a componente egocêntrica deste complexo é englobada numa subjetividade comunitária mais larga., porque ser sujeito é ser autónomo, sendo, ao mesmo tempo, dependente.

Desde o início do projeto “Fazer a Ponte”, prevaleceu uma matriz axiológica bem definida. Tudo aquilo que fizemos (ou optamos por não fazer) decorreu de valores.

Não se pense que tais valores foram mero ornamento de um projeto educativo. Eles foram levados às últimas consequências nas mudanças, que, gradual e responsavelmente, introduzimos nas práticas, até à celebração do primeiro contrato de autonomia de que há memória no mundo da educação.

A autonomia exprime-se como produto da relação. Não existe autonomia no isolamento, mas relação EU-TU, no sentido que Buber lhe outorga. É, essencialmente, com os pais e os professores que a criança encontra os limites de um controlo que lhe permite progredir numa autonomia, que é liberdade de experiência e de expressão, dentro de um sistema de relações e de trocas sociais. Conclusão: a autonomia convive com a solidariedade.

Passei os últimos setenta anos afirmando ser um projeto humano resultado do labor de um coletivo. Sofri por ver como as quebras de solidariedade fragilizaram promissores projetos. No sul da Bahia do final de 2023, se anunciava uma nova Educação para um novo tempo. E eu fazia votos de que, em 2024, os educadores se tornassem exemplos de solidariedade, pois a aprendizagem acontece por imitação.

Certo dia, acolhemos na Ponte mais um jovem jogado fora de outra escola. Na primeira ida ao banheiro, o jovem urinou no cesto dos papéis. Na reunião da Assembleia de Escola, um aluno pediu a palavra e disse:

“Eu faço parte da Responsabilidade do Recreio Bom, que também cuida dos banheiros. Quero dizer-vos que, nesta semana, um de nós urinou no cesto dos papéis. E quero pedir a ajuda de todos, para ajudarmos um de nós a não voltar a fazer isso.”

Um de nós!

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXIV

São Paulo, 30 de dezembro de 2043

Antes que o ano de quarenta e três termine, quero falar-vos de educadoras como a Claudia e a Edilene, coautoras de projetos como o Âncora e a Escola Aberta, seres humanos devotados à causa das crianças.

Aquilo que mais as carateriza é a competência profissional, a bondade e o desapego. Delas vos falarei nesta cartinha, sem precisar de citar, de novo, os seus nomes, pois elas são aquilo que aqui escrevo.

Escola é construção social, currículo é construção histórica e reflete ideologia. Até há pouco tempo e excetuando algumas esparsas experiências, a educação escolar era entendida apenas como treinamento no domínio cognitivo, sendo ostracizadas as dimensões do afeto, da emoção e até mesmo da espiritualidade. Ignorava-se que currículo não é apenas conteúdo, mas também múltiplas experiências proporcionadas ao aluno.

Adotemos o princípio kantiano, que nos diz que o objetivo principal da educação é o de desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele seja capaz. Apresenta-se como imperativo ético que assumamos o desapego, sem o qual, apenas fomentamos crônicas dependências naqueles com quem compartilhamos a existência. Fomentemos uma autonomia, que não é autossuficiência e solidão, mas algo que se exerce relativamente ao outro, com o outro, sem desistir do outro.

Experienciei algumas situações em que o desapego se combinou com uma autonomia, com o respeito por si próprio. A Clarice dissera que aquilo que era verdadeiramente imoral era ter desistido de si mesmo. Talvez seja mais fácil de entender essa combinação, se  vos der a ler pedaços de uma carta recebida do meu amigo Jean:

O meu pai faleceu nesta madrugada. É difícil exprimir tudo o que sinto. O meu pai viveu muito e bem, soube viver e soube morrer. Permaneceu lúcido até ao fim, e penso que não foram as dores físicas que o fizeram partir. Há cerca de um mês, ele disse-me: “Quando a vida já não pode ser melhor…”

Nos seus 87 anos, viu duas guerras mundiais e exerceu a profissão de professor. Nas últimas duas semanas de vida, já quase não se alimentava e falava com uma voz quase inaudível: “É sempre preciso partir… Sê feliz, Jean, tenta fazer o que puderes para ser feliz.”

Agora, que vejo estas palavras escritas no meu computador, parecem-me poucas. Acho que o meu pai tinha aquela capacidade de dizer coisas por trás das palavras que dizia. Peço-lhe desculpa por este desabafo. Há tanta coisa ainda cá dentro!”

É bem difícil o desapego de pessoas e momentos. Está fora de causa que não amemos aqueles seres que se vão para sempre, mas talvez essas dolorosas partidas devessem ser bem mais suaves. A morte nada tem de trágico, a não ser para quem nunca viveu.

Nas escolas ensinava-se quase tudo, exceto a saber viver. E nunca estávamos preparados para perdas e lutos.

Por mais que a frase aparente contradição, diria que desapego é compartilhamento, o trabalho em equipe. E, mesmo na ausência, se pode compartilhar – que o digam as práticas quânticas.

O mestre Dalai Lama aconselha-nos a que, nem que seja por egoísmo, façamos alguém feliz – fazer alguém feliz, mesmo à distância, é um modo de exercitar o desapego.

Ao morrer, Alexandre Magno, determinou que os tesouros conquistados fossem espalhados no caminho até seu túmulo e que suas mãos fossem deixadas balançando no ar, fora do caixão, à vista de todos.

Nascemos nus, partimos nus, nada nos pertence. Não façamos listas de livros emprestados. Tenhamos a bondade de desaparecer, deixando um rasto luminoso de palavras e gestos, a iluminar novos caminhos de novos passantes. Como o fizeram a Claudia e a Edilene.

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