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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDII

Vitória da Conquista, 7 de fevereiro de 2044

Queridos netos, hoje e com a devida vénia, preencherei esta cartinha com palavras escritas pelo meu amigo Antônio. Espero que vos façam um bom proveito, que possais sobre elas refletir. A mim, fez-me pensar. E muito!

“O amanhã está à venda? Podemos por aqui iniciar uma boa reflexão. É tempo de profundas mudanças no mundo, na educação e nas escolas vivenciamos um cenário de grandes dúvidas e incertezas, que ao contrário de nos arrastar para o desânimo, nos mobilize coletivamente para a abertura de novos caminhos.

A educação sempre foi e continua sendo um dos lugares de transformação do mundo, mas, para isso, tem ela própria de se transformar. Não se trata de alimentar visões mirabolantes de um futuro sem escolas e sem professores, substituídos por aparatos tecnológicos ou pelo admirável mundo novo da inteligência artificial. Usar sempre qualquer maré a favor de uma boa causa, nos parece justo, mas não cabe exageros, afinal, o processo de aprendizagem nesse caminho de transformação por compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo solicita segurança, competência profissional, apreensão da realidade, aceitação do novo, bom senso e generosidade (Paulo Freire).

O que será o amanhã? É a pergunta que nos inquieta hoje mais do que em qualquer outro momento de nossa história. O filósofo francês Edgar Morin, num dos seus últimos livros, convida-nos a mudar de via e de vida nas escolas, com a adoção de um novo contrato social, proposta feita pela UNESCO no seu último relatório sobre os futuros da educação.

Evitemos o pathos da novidade, a ideia futurista de um começo a partir do zero. Devemos honrar e prolongar o patrimônio comum da educação, construindo os processos de transformação a partir de milhares de experiências e de projetos que já existem nas nossas escolas, em todo o mundo”.

A partir dessas novas perspetivas, podemos imaginar um outro futuro, viajando até o infinito das possibilidades de agir em conjunto. Temos de assumir, com coragem, as nossas dúvidas e, até, o risco de nos enganarmos. O risco é uma necessidade essencial da alma, diz-nos Simone Weil: “A ausência de risco suscita uma espécie de aborrecimento que paralisa de maneira diferente, mas quase tanto como o medo” (1949, P. 49). Sim, a vulnerabilidade tem muito a nos ensinar.

O mundo e a escola futura serão feitos de cooperação, assim imaginamos. Pois ninguém se educa sozinho. Precisamos dos outros para nos educarmos. Precisamos de professores. Precisamos do poder da relação, do encontro entre mestres e discípulos. Precisamos, como escreve Bernard Charlot, de ocupar o mundo com humanidade e ocuparmo-nos dele, com todas as formas de solidariedade que este termo implica: “Deve ser este o princípio de base de uma educação contemporânea. É da educação, e da educação humana, que se trata”.

O mais importante é sermos capazes de libertar o futuro, como bem defende o educador Antônio Nóvoa inspirado por Ivan Illich. Ninguém sabe como será o futuro e nem sequer vale a pena tentar adivinhá-lo. Mas temos a obrigação de tudo fazer para não fechar as possibilidades de futuro, para garantir a liberdade das gerações futuras.

Como bem lembrou o poeta e artista visual brasileiro Wlademir Dias-Pino, a liberdade é sempre experimental.

E mais uma vez nos perguntamos: o que será O AMANHÃ?

Precisamos com força, LIBERTAR O FUTURO!”

Nos idos de vinte e três, o Antônio nos questionava, com pertinência. Quem o terá escutado? Quem terá libertado o futuro, humanizado o ato de aprender? Quais foram os artífices de um amanhã desejado?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDI

Penedo, 6 de fevereiro de 2044

No fevereiro de dois mil e vinte e quatro, o vosso avô andava por terras alagoanas, conversando com professores e gestores, falando-lhes da necessidade de romper com distopias. 

Convivi com professores gestores de elevada qualificação profissional, que diziam pretender concretizar uma gestão democrática. Fiz-lhes ver que essa seria uma utopia realizável, se as escolas se assumissem em autonomia. O exercício de autonomia era condição sine qua non de gestão democrática. 

E em que consistia esse exercício?

Diretor, ainda que sujeito a concurso, ou eleito pelos seus colegas, sempre deveria sujeitar-se ao indigno “dever de obediência hierárquica”. Mesmo que não concordasse com a ordem recebida, deveria cumpri-la e fazê-la cumprir pelos “subordinados”.  Só através de uma gestão comunitária se poderia aspirar a uma gestão democrática.

Senti ter quebrado um pouco o entusiasmo da festa de tomada de posse dos novos gestores, quando lhes dirigi essa e outras perturbadoras perguntas. Em breve vos direi o que sucedeu. Nesta cartinha, prefiro falar da apresentação de um livro sobre Penedo, que antecedeu a minha “palestra”. 

Foi um momento de “criação de comunidade”, base de afirmação de uma autonomia, ainda que relativa. E, quando os autores do livro referiram a origem do termo “Penedo”, assomou à memória o dia em que uma criança me perguntou: 

“Porque é que a nossa terra se chama Vila das Aves?”

“Por que será?” – eu respondia sempre com perguntas…

A curiosidade se consumou numa pesquisa. Elaboramos um roteiro de estudo, através do qual, os alunos “passearam” pela história local, descobrindo que o primeiro rei tinha nascido nas “Bouças do Rex” e não em Guimarães. Estudaram Geografia, Hidrografia… até à conclusão de que a sua terra não era Vila das Aves, mas Vila dos Aves.

A sua terra não era uma vila dos pássaros, de aves. O nome “Aves” nada tinha a ver com pássaros, mas com água, conforme sugeria o sema “av”, possivelmente celta. 

 

Enlaçadas pelo abraço mesopotâmico de Entre Ambos-os-Rios (Ave e Vizela), as pequenas paróquias de Santo André de Sobrado e de São Lourenço de Romão se lhe untaram. A etimologia celta descrevia uma ecúmena rodeada por três rios – era a “Terra de Entre-Ambolos-Aves”, de Entre-Águas, ou apenas “Aves”, como o mapa de Portugal mostrou.

Em 1983, compus um roteiro, publicado pela Junta de Freguesia. Nele se explicava a origem da toponímia de um aglomerado de aldeias conhecidas por “lugares” dispersos, sem uma ágora congregadora: Fontaínhas, Bom Nome, Paradela, Santo Honorato, Ponte Nova… 

Mas, uma escola havia criado profundas raízes numa terra dispersa. Três décadas bastaram para agregar bairrismos, onde os rios Ave e Vizela se abraçavam. Dediquei mais de metade de meio século do exercício da profissão de professor a uma comunidade, a um projeto. 

Em 1976, quando cheguei à Ponte, encontrei um povoado em crise, afetado pelo desemprego, pela poluição, pela corrupção. Muitos avenses haviam emigrado. A um cenário desolador se juntou a impressão que me ficou, ao deparar com um edifício construído no século XIX, arruinado, a que davam o nome de “escola”. 

No terreno em torno da “escola”, quando a chuva e o vento não o fustigavam, o transformávamos em “sala de aula reinventada”, no seio de uma comunidade.   

Até que chegou um tempo em que, traindo a decisão soberana de um Conselho de Escola, de uma comunidade que queria manter a escola em Vila das Aves, gestores hierarquicamente obedeceram, permitindo que o projeto fosse arrancado das suas raízes.

De que servia o contrato de autonomia de 2004?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MD

Maceió 5 de fevereiro de 2044

“Finalmente, a viagem conduz à cidade de Tamara. Penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das paredes. Os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registar os nomes com os quais ela define a si própria.”

Queridos netos, vos recomendo a leitura do livro do Ítalo Calvino. É um sem-fim de imagens, ou como alguém disse, uma “espécie de atlas do sonho geométrico humano, um relato metanarrativo”, uma reflexão de Ítalo sobre a noção de Utopia.

Há cinquenta ou trinta anos atrás, não faltaram educadores éticos, pretendendo dar forma a utopias educacionais, e que se defrontavam com um conjunto de interditos e não-ditos da profissão. Em noventa e cinco, num texto intitulado “Dez palavras não ditas, ou o rosto oculto da profissão docente”, Perrenoud isto escreveu:

O que é importante, para formar professores, para controlar o desenvolvimento dos sistemas educativos, as reformas das estruturas e dos currículos, o combate ao insucesso escolar, não são julgamentos globalmente equilibrados dos professores, enviando de volta para trás detratores e defensores incondicionais.

Para construir um plano e sistemas de formação, seria melhor fazer uma análise paciente da complexidade da profissão, ter em conta o que é dito publicamente, e que contém alguma verdade, mas também, e talvez antes de tudo, identificar o que está no cerne das práticas pedagógicas, mas não pode ser dito publicamente.

A pergunta pode parecer trivial: toda organização não tem cadáveres no armário, toda corporação profissional sua ovelha negra?

Há, em cada corpo constituído, à margem, uma fração de pessoas estritamente indefensáveis, que usurpam seu título e a confiança depositada neles. A corporação não pode reconhecer isso publicamente, exceto quando é a única maneira de se proteger do risco ainda mais grave de parecer encobrir o inaceitável. A imagem pública do profissional “médio” proposta por uma corporação profissional é, portanto, sempre mais otimista do que a diversidade real de práticas e profissionais.

Os praticantes mais admiráveis são destacados por suas habilidades, dedicação, trabalho árduo, retidão e espírito inovador. Minimiza-se a proporção daqueles que não possuem as qualificações exigidas, fazem o mínimo possível, não cumprem as regras éticas ou não renovam sua formação.

Por que os professores deveriam ter mais interesse do que outros em reconhecer abertamente a imperfeição?

Seria muito interessante comparar a maneira como tentam esconder, ou minimizar, sua parcela de falhas ou “erros”. Não me interessam as margens, mas a página, o que constitui o núcleo da profissão exercida por professores comuns, normalmente competentes e respeitáveis.

Não se trata, portanto, de exceções, por mais numerosas que sejam, mas de regra: a docência parece-me ser uma profissão em que alguns componentes principais são ignorados ou largamente diluídos nas imagens públicas da profissão e mesmo nas imagens internas.”

O Philippe analisava aspetos não ditos da profissão docente: o medo; a sedução negada; o poder vergonhoso; a avaliação todo-poderosa; o dilema da ordem; a parte ineficiente; a solidão ambígua; o tédio e rotina; a discrepância indescritível; a liberdade sem responsabilidade.

Por que seria que o Philippe chamava a esses não-ditos “comédia de maestria e racionalidade”?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCIX

Anastácia, 4 de fevereiro de 2044

“Anastácia desperta uma série de desejos que deverão ser reprimidos, quem se encontra uma manhã no centro de Anastácia será circundado por desejos que se despertam simultaneamente. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo.”

Essa cidade invisível era habitada por escravos voluntários, muito semelhantes aos funcionários, que o sistema educacional dos idos de vinte recompensava, seguindo um vergonhoso princípio: “quanto mais tempo me servires, mais dinheiro te darei”.

Não importava qual fosse a qualidade do trabalho desenvolvido pelo professor “funcionarizado”. Ele só precisava de “marcar o ponto”, preencher “papelada”, copiar e aplicar “planejamentos” “dar aula”, ser serviçal de um sistema.

Estava estabelecido que a progressão nos escalões da carreira se faria “por decurso de tempo de serviço efetivo; pela frequência com aproveitamento de módulos de formação”. 

Os efeitos do “aproveitamento de módulos de formação” não eram de curto prazo, nem o acumular de certificados e créditos pressupunha o aumento da boa qualidade de desempenho. Também não estava provado que a experiência acumulada “no decurso de tempo de serviço” conferia maior qualidade ao exercício da profissão – confundia-se “experiência” com “formação experiencial”, ou com a “valorização de adquiridos”! 

Fui dirigente sindical. Numa reunião de elaboração do “Estatuto da Carreira Docente”, um colega afirmou ter 30 anos de experiência e que, por isso, tinha direito a melhor salário e a prioridade nos concursos. 

Perguntei-lhe se dava aula. Disse que sim E eu informei-o de que estava errado o seu raciocínio. Só tinha um ano de experiência – durante 29 anos, apenas repetira 29 vezes a experiência do primeiro. 

A cultura de castas se reproduzia, sem se distinguir “servidor” de “serviçal”. Em outubro de 2020, um jornal publicava uma ridícula notícia, que reproduzia e reforçava ancestrais e obsoletos conceitos de servidor público e de escola: 

“Uma super boa notícia para os concurseiros! O próximo concurso público para professores efetivos já tem data definida para ser lançado!”. 

Naquele tempo, os professores eram “concurseiros remanejados”. Na minha terra, o manajeiro era o capataz que controlava o remanejamento do gado. Sem avaliação de desempenho, apenas valendo como critério o tempo de serviço, era compensada uma bovina servidão aos “superiores” e comprometida a estabilidade das equipes de projetos inovadores. De um ano para o seguinte, professores eram substituídos por dadores de aula “funcionarizados”, que, em pouco tempo e a mando de outros funcionários, destruíam os projetos.

A profissão de professor esteva fragmentada em castas, réplicas da escola da Prússia militar e da Inglaterra da Primeira Revolução Industrial. Era evidente a diferença de estatutos entre profissionais de um mesmo ofício: “professor coordenador, efetivo, provisório, eventual, substituto, contratado, agregado, readaptado, temporário, do “superior” e do “inferior”. E um professor do ensino “superior” auferia salário duas ou três vezes superior ao do… “inferior”.

Como poderia ser erradicada a “funcionarização” dos professores? Quando seriam extintas as castas e dignificada a profissão? 

A “funcionarização” era mais um indício de corrupção moral. Por que se terá mantido por tanto tempo? 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCVIII

Zaíra, 3 de fevereiro de 2044

“Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: o salto do adúltero que foge de madrugada; a história do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha.”

Volto a citar Calvino, para vos falar de uma das práticas escolares origem de corrupção moral. Os professores não ensinavam o que diziam, transmitiam aquilo que eram. E a cegueira moral de a maioria padecia não lhes permitia ver, por exemplo, que a aplicação de testes era veículo de transmissão de valores.

Iria acontecer uma “prova nacional”. Mostrei aos meus alunos o que era um teste. Perguntaram-me por que teriam de o fazer em cinquenta minutos. Não soube responder. Aliás, ninguém sabia. 

Quando terminei a explicação daquilo a que iriam ser submetidos – uma prova de aferição nacional – um aluno quis saber por que o professor estava ali, especado, porque não ia fazer algo útil, em outro lugar. 

Um jovem oriundo de uma escola, onde era hábito haver professores a vigiar os alunos, enquanto faziam as provas, esclareceu:

O professor fica na sala, para não deixar que os alunos possam copiar (colar).

Uma criança perguntou:

O que é colar?

Esta pergunta me perturbou. Sempre me senti individualmente responsável pelos atos do meu coletivo, do meu grupo profissional. Aquela pergunta me incomodou profundamente. O professor que ficava de vigia considerava que os seus alunos eram seres potencialmente desonestos – se pudessem colar, colariam. 

Se o professor não ensinava aquilo que dizia, mas transmitia aquilo que era, o professor-polícia transmitia valores: desconfiança, mentira, falsidade… corrupção. 

O não verbal falava mais alto que o verbal! O professor, que ficava de vigia, deseducava.

A Mirinha saiu da Ponte, no final do quarto ano. Frequentava o oitavo ano, numa escola onde se fazia teste. Por uma questão de princípio – porque a aprendizagem de uma atitude se tinha processado na Ponte – não incorria naquilo que começara a classificar de “deslealdade”. Até que, um dia, chegou a casa visivelmente incomodada, e a mãe quis saber o porquê da arrelia. 

Ao cabo de algumas insistências, a Mirinha lá desembuchou: 

Hoje, houve prova, A meio, a professora foi chamada ao telefone, acho eu. E quando voltou, percebeu que muita gente tinha colado. Vai daí, disse que nos ia tirar dez pontos a todas.

A todas? – perguntou a mãe, surpreendida.

Sim, a todas! – confirmou a Mirinha. 

Não me digas que tu também… – insistiu a incrédula progenitora. 

Não! É claro que não colei! Fui a única que não colou! – retorquiu perentória a jovem.

E, então? Não percebo! Não sabias dizer à professora? – devolveu-lhe a mãe.

Ó mãe, tu achas que a professora iria acreditar em mim?

Alguns anos mais tarde, o vosso avô teve de fazer um teste… na universidade. 

Entrei na sala da prova. As primeiras filas estavam vazias. Os alunos estavam no fundo da sala. À entrada, um amontoado de malas de senhora, pastas, cadernos…

Sentei-me na primeira fila. A vigilante ordenou-me que colocasse a minha pasta junto das restantes, na entrada da sala. Recusei cumprir a ordem. Ameaçou-me de não permitir que eu fizesse o teste, se não lhe obedecesse. Desobedeci. Sem perder a dignidade, sem permitir que duvidassem da minha honestidade. Porque eu era educador.

Se a educação acontece pelo exemplo, por que razão os professores continuaram a fazer o papel de polícias?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCVII

Algures, em 2 de fevereiro de 2044

“Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano:

Devo atrair a sua atenção para uma qualidade intrínseca dessa cidade, um amor latente pela justiça, ainda não submetido a regras, capaz de compor uma cidade ainda mais justa do que era antes de se tornar recipiente de injustiça.“

No seu livro “As Cidades Invisíveis”, Calvino fala-nos de injustiça e do seu reverso. A minha amiga Teresa tinha-me oferecido um exemplar dessa obra e eu recomendava a sua leitura, para que os leitores pudessem compreender como a injustiça tinha rédea solta no sistema hierárquico e autoritário dos idos de vinte.

Nesse ignominioso tempo, era comum a instauração de inquisitoriais processos contra qualquer educador que ousasse tentar… cumprir a lei. À semelhança de outros educadores, a Fabi desenvolvia um projeto perfeitamente enquadrado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Porém, os burocratas das diretorias, secretarias e órgãos quejandos usavam uma lei do tempo da Ditadura, para destruir esse e outros projetos. 

À luz das ciências da educação e da Lei de Bases de noventa e seis, o libelo acusatório era um chorrilho de disparates. Acusavam a Fabi de se ter manifestado de forma depreciativa em relação aos projetos e demandas da Secretaria de Estado da Educação” e de ter autorizado a realização do projeto “Tutoria em Ação”.

Pois a Fabi só poderia manifestar-se de forma crítica, “depreciativa”, em relação à inutilidade dos projetos e ao sem sentido das demandas da Secretaria de Educação”. A realização do projeto “Tutoria em Ação” não carecia de autorização de “superiores hierárquicos”, pois estava fundamentado na lei e nas ciências da educação, ciência ocultas para os burocratas das secretarias.

A “Tutoria em Ação” era uma práxis consistente. Se a Fabi, formalmente, “pedisse autorização”, para desenvolver o projeto, apresentando-o à consideração a suas excelências da Diretoria, estas não o entenderiam e, provavelmente, o rejeitariam. No tempo em que a Educação ainda estava nas mãos de gente autoritária, era arriscado exercer a profissão de professor com dignidade. 

Exercer liberdade de expressão consistia no direito de expressar opiniões, ideias, sem interferência ou censura governamental. Em democracias avançadas, o direito de se expressar fora alçado ao status de fundamental. A “Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos declarava que não se faria nenhuma lei “restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa”. Essa proteção abrangia uma ampla gama de formas de expressão, incluindo a fala, a imprensa, a liberdade acadêmica.

O libelo acusatório acrescentava um conjunto de alegações que qualquer advogado desprovido de conhecimento pedagógico e científico julgaria pertinentes. Mas, não passavam insinuações escritas num tempo verbal (o condicional presente), não se tratando, evidentemente, de acusações provadas, à luz da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e da Constituição, que, no seu artigo 5º, incisos IV e IX, a Lei estabelecia:

“É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”

E eu perguntava:

Iríamos consentir que, em democracia, a Fabi fosse “DEMITIDA” (era essa demanda da Diretoria, em letras maiúsculas), com base numa lei do tempo da Ditadura?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCVI

Saquarema, 1 de fevereiro de 2044

“É possível inferir uma imagem da futura Berenice, que estará mais próxima do conhecimento da verdade do que qualquer notícia sobre o atual estado da cidade. Contanto que se tenha em mente o que estou para dizer: na origem da cidade dos justos está oculta, por sua vez, uma semente maligna, fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represália (…) o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada.”

Um Calvino profético coloca Marco Polo a descrever uma corrupção, de que Vieira já falara, no século XVII. 

Quando voltei ao sótão da casa velha, para jogar fora o enferrujado baú das velharias, achei dentro dele um embrulho. Retiradas as teias de aranha, sacudido o pó, ali estava um molhinho de cartas. A primeira das cartas era dirigida ao Padre Vieira e abordava um fenômeno desse tempo, felizmente já erradicado: a corrupção. 

“Qual a causa da corrupção de uma terra? Ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem do que fazer o que dizem. O que se há de fazer ao sal que não salga e à terra que não se deixa salgar?”

A perseguição movida contra a Fabi era um caso exemplar de corrupção moral. Essa extraordinária educadora havia criado uma equipe na escola de que era diretora, e desenvolvia um belo projeto, tendo-se esquecido de que estava sujeita ao indigno “dever de obediência hierárquica”.

Era um tempo em que diretorias, secretarias, ministérios impunham às escolas a prática de um modelo de ensino que não lograva garantir a todos o direito à educação. Professores “funcionários” sabiam que, ensinando daquele modo, condenariam a maioria dos alunos à ignorância (como o IDEB comprovava), mas fingiam que ensinavam. A corrupção grassava na administração pública e nas escolas, uma corrupção moral origem de máfias do transporte e da merenda do livro didáticos e dos sistemas de ensino, da mercantilização da Escola Pública, a corrupção moral mãe de todas as corrupções. 

O dicionário nos dizia que corrupção significava, também, “deterioração, depravação de hábitos e costumes, devassidão”. O sistema de ensino se deteriorara a tal ponto, que sobrevivia assente numa sutil inversão de valores. Continuava apodrecendo, exalando miasmas de decomposição, como o comportamento de diretorias persecutórias, que agiam sem pudor de fraudar.

Não havia parâmetros, regras, limites para o autoritarismo e a corrupção moral. Tendíamos a regredir à barbárie. Esgotava-se a energia vital do lado saudável de um sistema, que entrara num processo de entropia. E a Fabi continuava exposta à maldade humana, só porque queria melhorar a vida das crianças e dos professores. 

A corrupção moral já levara à tentativa de colocar câmaras de vídeo dentro de salas de aula, a que políticos ignorantes entrassem em escolas para intimidar professores, e a tentativas de censura esboçadas por burocratas da educação ditatoriais. Os diretores permaneciam cativos de um indigno “dever de obediência hierárquica”, que dava aso a nefastas atitudes da administração educacional. Burocratas conscientes de impunidade não hesitavam em perpetrar atos administrativos discricionários. E, quando alguém desobedecia a normas sem nexo, arriscava ser admoestado e até mesmo vítima de perseguição. 

Consentiríamos que a Fabi fosse punida por corruptos? Cadê a solidariedade em ato?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCV

Berenice, 31 de janeiro de 2044

Calvino, de novo, a desocultar cidades feitas de ignominiosa injustiça:

“Em vez de falar de Berenice, cidade injusta, que coroa com tríglifos ábacos métopes as engrenagens de suas máquinas de triturar carne (os funcionários responsáveis pela limpeza, quando levantam a cabeça acima dos balaústres e contemplam os átrios, as escadarias, os pronaus, sentem-se ainda mais enclausurados e baixos de estatura), eu deveria falar da Berenice oculta, a cidade dos justos

em vez de representar as piscinas perfumadas das termas em cujas bordas se estendem os injustos de Berenice enquanto tecem as suas intrigas com redonda eloquência e observam com olhar dominador as carnes redondas das odaliscas que se banham, deveria falar de como os justos, sempre prudentes em evitar as delações dos sicofantas e as armadilhas dos janízaros”.

Não era a primeira vez, nem seria a última, que um poder público prepotente praticava injustiças. A “funcionarização” dos professores era causa de vis afrontas praticadas por diretores, secretários, ministros. 

A Céu Roldão descrevia a insana situação: 

“Vive-se, atualmente, um momento particularmente crítico, em que se joga a afirmação ou esbatimento da profissionalidade docente, por força de fatores como a imobilidade persistente dos dispositivos organizacionais e curriculares da escola geradora do seu anacronismo ante as realidades atuais, a pressão das administrações e dos poderes económicos para uma funcionarização acrescida dos docentes, todavia também largamente alimentada pelos próprios professores, prisioneiros de uma cultura que se instalou ao longo deste processo e que contradiz a alegada reivindicação – no discurso político e no discurso dos próprios docentes – de uma maior autonomia e decisão, desejavelmente associadas a um reforço de profissionalidade.”

Nos idos de vinte, por não se deixar “funcionarizar”, a Fabi foi alvo de um kafkiano processo disciplinar. Mas, o que constava dos autos, quais as irregularidades cometidas pela “indiciada”?

Consta que a Fabi teria concedido uma entrevista a um programa de rádio, sem que, previamente, tivesse comunicado à Diretoria que a iria fazer.  A “indiciada” infringira uma regra semelhante àquela que professáurios de antanho impunham na sua sala de aula. A Fabi deveria continuar a pedir para falar, ou “para ir lá fora, fazer xixi”. 

Talvez, até, devesse apresentar (previamente!) para análise de censura prévia, aquilo que iria dizer no programa em causa. Seria ridículo, se não fosse grave exibição de autoritarismo, em tempo de (ainda que precária) democracia. Mas essa cretina atitude da Diretoria tinha uma absurda “explicação” – a Diretoria evocava uma lei aprovada pela Assembleia de São Paulo… a Lei nº 10.261/68. Lestes bem, queridos netos: uma lei de 1968!

O “Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado” , que a Diretoria impunha aos professores, para os “funcionarizar” tresandava a ditadura. 

Trinta anos após a publicação dessa lei, uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) tinha sido publicada. Mais de meio século decorrido, a ditadura tinha acabado e a Fabi tentava cumprir a Lei aprovada em 1996 e que estipulava que as escolas e professores fossem autônomos. Porém, os burocratas serviam-se de um palimpsesto, para impedir o cumprimento da lei, para vigiar e punir.

Naquele tempo, diretorias, secretarias e quejandos, impunemente, perseguiam educadores éticos e destruíam os seus projetos. E eu perguntava:

Até quando iremos permitir que atos infames sejam praticados?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCIV

Doroteia, 30 de janeiro de 2044

Na cidade de Doroteia, o cameleiro que me conduziu até ali disse: “Cheguei aqui na minha juventude. Antes disso, não conhecia nada além do deserto e das trilhas das caravanas. Naquela manhã em Doroteia senti que não havia bem que não pudesse esperar da vida. Nos anos seguintes meus olhos voltaram a contemplar as extensões do deserto e as trilhas das caravanas; mas agora sei que esta é apenas uma das muitas estradas que naquela manhã se abriam para mim em Doroteia”.

Partindo da releitura de Calvino, ofereço-vos um belo naco de prosa da Marguerite Yourcenar (“Les Eux Ouverts”), partilho aquilo que mão amiga me fez chegar. 

“Condeno a ignorância que reina neste momento nas democracias e nos regimes totalitários. Essa ignorância é tão forte, muitas vezes tão total, que seria dito desejado pelo sistema, se não pelo regime. Muitas vezes me perguntei como poderia ser a educação de uma criança.

Acho que seria necessário estudos básicos, muito simples, onde a criança aprendesse que existe no universo, num planeta cujos recursos terá que gerir mais tarde, que depende do ar, da água, de todos os seres vivos, e que o menor erro ou a menor violência arrisca destruir tudo.

Ele iria aprender que os homens se mataram uns aos outros em guerras que só produziram mais guerras, e que cada país organiza sua história, falsamente, para esmagar seu orgulho.

Ele seria ensinado o suficiente do passado para fazê-lo sentir-se ligado aos homens que vieram antes dele, para admirá-los onde merecem estar, sem se fazerem ídolos, nem do presente ou de um futuro hipotético.

Nós tentaríamos familiarizá-lo tanto com livros como coisas; ele saberia os nomes das plantas, conheceria os animais sem se entregar às hediondas vivissecções impostas às crianças e adolescentes muito jovens sob o pretexto da biologia.

Ele aprenderia a dar primeiros socorros aos feridos; sua educação sexual incluiria a presença de um parto, sua educação mental a visão dos doentes e dos mortos.

Eles também lhe dariam as simples noções de moralidade sem as quais a vida na sociedade é impossível, instrução que as escolas primárias e secundárias já não se atrevem a dar neste país.

Em termos de religião, nenhuma prática ou dogma lhe seriam impostas, mas seria-lhe dito algo de todas as grandes religiões do mundo, e especialmente do país onde se encontra, para despertar o respeito nele e destruir antecipadamente certos preconceitos odiosos.

Ele seria ensinado a amar o trabalho quando o trabalho é útil, e a não cair na hipocrisia da publicidade, começando por aquele que lhe vende doces mais ou menos irritados, preparando-o para futuras cáries e diabetes.

Há definitivamente uma maneira de falar com as crianças sobre coisas realmente importantes mais cedo do que nós.”

Este texto foi escrito há mais de sessenta anos. Marguerite nos falava daquilo a que os “especialistas em educação” chamam “aprendizagens essenciais”, sobretudo do aprender a ser. Mas, os “especialistas” dos idos de vinte continuavam a considerar como essencial aprender mesóclises, raízes quadradas, dígrafos, produções da Senegâmbia e piroclásticas…

Nesse tempo, depois de meio século a porfiar por melhorar o sistema, compreendi que ele não tinha melhoria possível, que precisávamos refundá-lo. E que seria precisa muita paciência para o refundar!

O texto da Marguerite dispensa comentário. Por isso, vos deixo com Neruda no lugar da pergunta do dia:

“Se cada dia cai dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCIII

Isidora, 29 de janeiro de 2044

“O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos, finalmente, chega a Isidora, cidade onde se fabricam à perfeição binóculos e violinos. Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade. Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.”

A descrição que Ítalo Calvino faz da cidade de Isidora me transporta a um tempo em que os meus desejos eram já recordações. O tempo do janeiro de vinte e quatro, quando a Maria Emília lamentava a perda de uma extraordinária mulher e educadora:

Morreu a nossa querida Ana Maria! 

Levei 24 horas a digerir. Se alguém não devia, não podia morrer era a Tana. Aberta e generosa, sempre disponível para os outros para as novas ideias e novas práticas, que punha em prática a sua visão de uma pedagogia ativa e que promoveu pioneiramente a inclusão e a filosofia para crianças. 

A Pedagogia perdeu alguém que a marcou, Portugal perdeu alguém que sempre lutou pela liberdade e por melhorar o mundo, e nós, os amigos perdemos uma amiga única que era sempre uma alegria encontrar!”

O Presidente da República de Portugal condecorou, a título póstumo, a pedagoga Ana Maria Vieira de Almeida com a Ordem da Instrução Pública, pela sua dedicação “à educação para a liberdade e para a democracia em Portugal”. 

“Para compreender a democracia portuguesa, é importante compreender percursos como este, porque completaram a resistência dos mais resistentes, foram percursos de procura da esperança, da tal utopia com os pés assentes na realidade, da inovação, e sempre com uma inquebrantável coragem cívica. 

Ela quis projetar essa sua luta pela democracia integral na educação. Acreditava que a educação era a forma mais duradoura, mais determinada de mudar as sociedades. E começou a mudar, antes mesmo do 25 de Abril. E nunca deixou de mudar, através da educação.”

A Ana tinha fundado e escola A Torre, em 1970, “como alternativa ao sistema de ensino em vigor”. Também nela eu me tinha inspirado, para conceber outra escola “alternativa ao sistema de ensino em vigor”. 

A Ana foi uma das raras educadoras que incarnaram o espírito da Revolução dos Cravos. Uma geração de transição que desaparecia, sem que a Educação portuguesa a soubesse honrar. 

Só depois da sua morte a Comenda da Ordem da Instrução Pública lhe foi atribuída, sinal de que os professores portugueses andavam muito distraídos, mais ocupados em “dar aula”, em escolas que não se constituíam em “alternativa ao sistema de ensino em vigor”. A profissão “docente” permanecia cativa de atavismos como o do professor solitário em sala de aula. O individualismo corroía a cultura profissional dos professores. 

No meu entendimento, a tardia homenagem à Ana não era mais do que uma homenagem ao trabalho de uma equipe: a da Torre. Em 2004, eu fora distinguido com a mesma comenda com que agraciaram a Ana. Entreguei as insígnias à Escola da Ponte, porque a entendi a comenda como homenagem a uma equipe: a da Escola da Ponte. 

O chefe de Estado encerrou a sessão de homenagem com um discurso em que elogiou o percurso da Ana e do seu marido, considerando que viveram “um amor ao serviço dos outros”, referindo-os entre aqueles “que mais resistiam e que mais eram perseguidos e que isso fizeram, décadas a fio”.

Por que se continuava a elogiar educadores mortos e a perseguir, em vida, aqueles que (em equipe!) criavam “alternativas ao sistema de ensino em vigor”?

 

Por: José Pacheco

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