Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXXXIV

Guarani, 10 de março de 2044

Na década de oitenta, o vosso avô fez parte da primeira turma da licenciatura em ciências da educação. Na disciplina de Sociologia, li todos os livros do sociólogo francês Pierre Bourdieu. A leitura da sua obra “O Poder Simbólico” me inquietou. 

O “poder simbólico” é um poder invisível, que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que estão sujeitos a esse poder, ou mesmo daqueles que o exercem. 

Manifestei perplexidade face à incoerência dos meus mestres. Na primeira das faculdades de ciências da educação, se venerava o sociólogo que denunciara a “reprodução” de um velho e obsoleto modelo de ensino. Eram redigidas teses questionadoras desse modelo. Mas era (e continuou sendo) esse o modelo praticado pelos académicos. 

O termo “instituído” foi cunhado por Bourdieu, que o utilizou para descrever as estruturas sociais – normas, valores, regras e estruturas – internalizadas pelos indivíduos e que influenciam suas ações e pensamentos. Segundo Bourdieu, o instituído é uma forma de poder simbólico, que é exercido sobre os indivíduos de maneira invisível e sutil. 

Num domingo de há vinte anos, quando relia o “Livro do Desassossego”, encontrei um princípio de explicação da universitária incoerência:

“Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano e o chefe socialista da aldeia, não há diferença de qualidade (…) Abaixo estamos nós, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton.”

O Pessoa sabia que, num sistema educacional, que ia de mal a pior, havia quem pugnasse pela manutenção do status quo e quem tentasse transformar o caos numa “nova ordem”.

Os “mestres-escolas” da Escola da Ponte nunca foram perdoados de terem encontrado um dos possíveis caminhos de humanização da Escola.

Houve quem se apropriasse desse saber-fazer. Senti dó daqueles que, consciente ou inconscientemente, alimentavam um sistema moral e intelectualmente corrupto, e, compassivo, os indultei do crime de enriquecer à custa do trabalho alheio.

Fui clemente face a parasitas universitários, que da Escola da Ponte se serviram, copiando o projeto em teses, “formações”, palestras feitas de PowerPoint e outros rentáveis produtos.  

Desculpabilizava e senti pena de funcionários ministeriais, que promoviam a “funcionarização” dos professores. Me compadeci dos seguidores de seitas pedagógicas neoliberais. E perdoei formadores reprodutores do modelo educacional prussiano.

Nutri compaixão por fundamentalistas terraplanistas, que chegaram a ministros e administradores ignorantes. Para eles pedi clemência a Deus. Que por Divina Graça lhes perdoasse os crimes de abandono intelectual, de falsidade ideológica, de assédio moral, sistematicamente cometidos – essas criaturas de Deus não sabiam por que faziam aquilo que faziam.

Pacientemente, tentava ignorar os efeitos perversos da indústria do “cursinho”, dos “centros de estudo”, de “explicações” e de reforço”.

Perdoei burocratas, para os quais as ciências da educação não passavam de ciências “ocultas”. Também tentava ser complacente com idiotas autoritários e abstrair-me das pérfidas façanhas de políticos intelectualmente corruptos que, em comissões de educação, tomavam decisões de política educacional.

Só não conseguia ser compassivo com os meus colegas das ciências da educação. Sentia vergonha de os ver colaborar com “túmulos caiados, onde germinava a podridão” (Mateus, 23:27).

Era obsceno o seu silêncio. Eles sabiam como mudar e refundar o “sistema”, mas não agiam para o modificar.

Por: José Pacheco

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