Montalegre, 23 de abril de 2040
Agostinho da Silva passou grande parte da sua vida no exílio, por não caber no estreito espaço da “normalidade” imposta numa pátria mergulhada nos tempos sombrios de ditadura. No Brasil que o acolheu, ajudou a fundar universidades e escreveu muitos livros. Naquela que foi a sua pátria de adopção, o mestre Agostinho, procurou “infundir vida nova” em universidades, que somente cumpriam rituais desprovidos de sentido. Numa das suas obras, falou-nos de um Francisco de Assis, que também não foi um ser “normal” para a sua época, pois semeava a palavra, mostrando a todos como era possível traduzir em atos os preceitos e como se podia infundir “vida nova” no que se fora transformando em seco ritual.
Jovem professor, fui “receber formação” numa universidade. Reparei nuns dísticos colocados nas entradas das salas. Uns informavam que aquele espaço era do Doutor Fulano. Outros, que era a “Sala do 3ºano” etc. Eram muitas as inscrições, mas uma delas me chamou mais a atenção, pois continha a seguinte inscrição: “sala de aula normal”.
Perguntei: “Também há salas de aula “anormais”? O funcionário estranhou que eu fizesse tal reparo e sentenciou: “É normal, senhor professor”. Quando o formador chegou, repeti a pergunta. Ele não achou graça. A minha pergunta foi ignorada e eu fui convidado a entrar para a “sala de aula normal”. De passagem, ainda escutei: “Este indivíduo é louco!”
Aprendi a lição. Sempre que deparava com o dístico: “sala de aula normal”, não arriscava fazer piada “fora do normal”. Apesar de que, perante o descalabro que se vivia nas escolas “normais”, tudo o que se fizesse de “anormal” só poderia significar mudar para melhor. Sempre contrariei a insistência na “normal” transmissão de conteúdo, desligada da compreensão dos saberes e isso me valeu receber o epíteto de “louco”. Tal como o “louco” Freinet de há um século, perseguido por comunistas e fascistas “normais”, só porque ousou interrogar a naturalização de práticas obsoletas.
Sentia-me confortado, quando partilhava as horas com professores “fora do normal”, que não esqueciam a canção que o rei do baião cantava: “lá no meu sertão, pró caboclo ler, tem que aprender um outro abc”. Nem o verso do Caetano: “de perto, ninguém é normal”. Convivi com professores que também interpelaram a “normalidade” instituída, redescobri a sabedoria dos “não-normais”. Num mundo normalizador da loucura, admirava a coragem de quem se expunha e fazia aquilo em que acreditava.
Alice, no teu curso de Psicologia, estudaste as experiências de Asch e de Milgram. E compreendeste a origem da pandemia de “normalidade”, que nos afetou em 2020. Talvez também saibas que um senhor chamado Lalande dizia ser a “norma” “o tipo concreto ou a fórmula abstrata do que deve ser, em tudo o que admita um juízo de valor”. Sabendo que juízos de valor podem ser caminhos para preconceitos e julgamentos injustos, nos idos de setenta, em trabalho de equipe – com a Maria José, a Maria Luísa, e pais dos alunos – ajudei a definir os valores da matriz axiológica do projeto “Fazer a Ponte”: autonomia, responsabilidade, solidariedade.
Assumimos um compromisso ético com a educação. Transformamos em ato teorias que andavam dispersas. Insistimos na benigna “loucura” de transformar uma escola reprodutora de ignorância e exclusão numa escola inclusiva e geradora de conhecimento.
Nunca nos perdoaram a ousadia. Sentimos os efeitos da maldade humana. E passamos a ser conhecidos como “loucos”, “professores fora do normal”.
Por: José Pacheco
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