Lagos, 15 de julho de 2040
Para que não se diga que este vosso avô criticava e não apontava caminhos, aqui vos deixo um registro de realizações elaborado no decurso da pandemia.
Na primeira semana do confinamento, os núcleos de projeto não conseguiram alcançar todos os alunos, pelo que se lançaram no mapeamento do potencial educativo e no levantamento de necessidades das comunidades onde os seus aprendizes residiam. Identificaram situações de sobocupação de espaços, de carência de alimento e de salubridade, a falta de computador e de acesso à Internet.
Em abril, cumprindo “ordens de superiores”, os professores exportavam aulas online, para cerca de metade dos seus alunos. E se angustiavam por não conseguirem contato com a maioria das famílias. Enquanto isso, os educadores dos núcleos de projeto já comunicavam com todos as famílias e círculos de vizinhança, já cuidavam da aprendizagem de todos os seus alunos – de todos! – e, se o isolamento social os privara do abraço presencial, com o abraço virtual os confortavam.
O conceito de wi-fi universal foi posto em prática. Quem dispunha de acesso à Internet disponibilizava um wi-fi para o vizinho do lado. E, se o Maycon só podia usar um rudimentar celular, já noite dentro, “quando a mãe regressava do ganha-pão de faxineira”, quem possuía dois computadores emprestava um.
Entre abril e julho, enquanto o subsídio do Governo não chegava, ou quando o escasso dinheiro se fora numa dúzia de esfomeadas bocas, havia sempre um vizinho mascarado a bater à porta dos necessitados, levando-lhe um prato de arroz com feijão – o exercício da solidariedade em comunidade.
Em agosto, a “recuperação da economia” expunha crianças ao perigo de contágio, num precoce e infame “regresso às aulas”. Em contraponto, os núcleos de projeto preparavam a adequação do edifício-escola, para o pós-pandemia. Definiam o prédio como uma “ágora”, espaço de encontro da comunidade. E outros espaços de aprendizagem concebiam, no levantamento do espólio das bibliotecas comunitárias e na instalação de plataformas digitais.
Reorganizando espaços, também reviam os tempos de aprendizagem. Acolhiam o ritmo horário da comunidade, o ritmo dos ciclos de vida e o tempo disponível de cada “voluntário”, numa espécie de “banco de horas”. Após a pandemia, reutilizando o prédio da escola, não haveria horário fixo de “entrada”, ou de “saída”. Não se tratava de entrar e sair de um edifício, onde supostamente se aprendia, mas de efetivamente aprender em múltiplos espaços de uma escola-edifício, que já não estava separada da comunidade.
Em comum, eram elaborados os planejamentos virtuais. Partia-se da produção de mapas de tempos comuns a todos os sujeitos aprendentes, para chegar a uma gestão individualizada do tempo. Voluntários e outros agentes educativos levavam em consideração contribuições da cronobiologia, cada educador estabelecia o seu tempo de repouso, harmonizando o seu existir com o pulsar da comunidade.
Os núcleos de projeto instalavam dispositivos de reconfiguração das práticas, constituíam tutorias e outros dispositivos de processos de mudança, recriavam o lema de um projeto “português” em que o vosso avô participara, muito tempo atrás: inovar, educando; educar, inovando.
A sementeira de criatividade e inovação acontecia na certeza de que, mesmo que fosse invisível aos olhos, mesmo que o tempo impusesse demora na evidência dos frutos, se até mesmo o sonho de fazer dos jovens seres sábios e pessoas felizes fosse aniquilado, teria valido a pena.
Por: José Pacheco
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