Minas Novas, 9 de novembro de 2040

Por meados do mês de novembro de há vinte anos, decorria nos Estados Unidos um ato eleitoral. O candidato derrotado não reconhecia a derrota e acusava a sua nação de corrupta. Talvez tivesse alguma razão. Nesse tempo negacionista, eleitores depositavam confiança em políticos corruptos, elegiam políticos racistas, davam o seu voto a gente boçal. Num tenebroso tempo de moderna barbárie, a falácia, o embuste e a mentira alimentavam o discurso político. Cadê o exercício da cidadania?

Os dicionários diziam ser a cidadania o exercício do “direito de cidade”. Dizia-se que o direito de cidadania se exercia quando se atingia a idade requerida para exercer direitos políticos estabelecidos na Constituição. Mas qual seria essa idade? Aquela que a lei outorgava aos que, já crescidos, contra ela atentavam?

Por que não partir do princípio de que a cidadania se aprendia no exercício da cidadania?

Conheci crianças que exerciam cidadania plena, em espaços de liberdade responsável. Também conheci adultos, com a idade requerida para o ser, cuja cidadania deixava muito a desejar. Recordo um dia em que levei os meus alunos a uma sessão da assembleia nacional.

Quando eles começaram a apontar para um deputado, que estava dormindo, arrependi-me de os ter levado àquele hemiciclo.

Quando eles me perguntaram por que alguns dos deputados liam o jornal, pensei em ir embora.

Quando a maioria dos deputados manuseava celulares, alheios ao discurso do tribuno, as crianças questionaram:

“Professor Zé, por que eles não estão com atenção ao senhor que está a falar no microfone?”

“Que falta de respeito!” – comentou outro dos meus alunos.

Não poderia continuar a expor os meus alunos aos maus exemplos dos representantes da nação. E dali os levei para uma biblioteca pública.

Mais ou menos por essa altura, conheci um professor de Filosofia, que dava aulas de… cidadania. Disse-me que a sua maior referência era Immanuel Kant. Despertou-me a curiosidade, levou-me à pesquisa.

Efetivamente, o eminente filósofo discorria sobre a saída do homem da sua menoridade. Segundo esse pensador, o homem era responsável pela sua saída da menoridade. Kant definia essa menoridade como a incapacidade do homem de fazer uso do seu próprio entendimento autonomamente, ou seja, sem a tutela de uma razão alheia.

Na nossa escola, não havia “aulas de cidadania”. Havia cidadania. No decurso de uma reunião da Assembleia da Escola, o Alberto apresentou uma “comunicação”. Tinha feito uma pesquisa sobre a guerra do Vietname e sobre a guerra do Iraque. No seu portfólio, havia várias evidências de aprendizagem: alguns papéis, um cd rom e uma reprodução tridimensional. O relatório de pesquisa chamou a minha atenção. Nesse documento, o Alberto registou dificuldades e aprendizagens. Uma delas foi descrita deste modo:

“Quando fui à internet, para estudar a guerra no Iraque, percebi que quase tudo estava escrito em inglês. E que eu ainda não sabia ler e falar inglês. Pedi ajuda ao meu grupo. Fiz o planejamento com a professora Paulinha. Ela ensinou-me adjetivos em inglês. Aprendi, por exemplo, que o adjetivo “bad” (que quer dizer “mau”) pode ser escrito com um b de Bin Laden, mas também com um b de… Bush”.

Aos sete anos de idade de “maioridade” cidadã, o Alberto aprendeu a ler em inglês. O seu roteiro de estudo conduziu a pesquisa. Recolhida a informação, sobre ela refletiu criticamente e produziu conhecimento. Compreendeu que, numa guerra, não há inocentes. São todos igualmente culpados. Tanto o Bin Laden, quanto o Bush… Tanto o Putin, quanto o Trump.

 

Por: José Pacheco