Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXXIX)

Belém do Pará, 24 de dezembro de 2040

Queridos netos,

No Dia de Natal de há vinte anos, enviei aos amigos votos de que a celebração daquele dia significasse mesmo o anúncio do Advento de novos tempos. Ontem, ao vasculhar velhos cadernos, encontrei notícias de primeira página de jornais desse distante Natal:

“Menina abusada e morta por padrasto”.

“Condenado a 18 anos de prisão por crimes de abuso e violação de enteada”.

“Mulher suspeita de espancar filha de 3 anos é presa”.

“Jovem tenta matar amigo a pedradas por ciúmes da própria mãe”.

Professora contou que uma vizinha a chamou de “preta nojenta”.

“Mulher é libertada após viver em condições de escravidão”.

“Presépio brasileiro mostra Menino Jesus negro em uma Amazônia devastada, um bebê negro, filho de uma virgem negra, rodeado de querubins indígenas”. 

Na sua “Antologia Poética”, Torga assim evocava o Natal:

“Nasce mais uma vez, Menino Deus! Não faltes, que me faltas, neste Inverno gelado. / Nasce nu e sagrado, nasce e fica comigo, secretamente, até que eu, infiel, te denuncie aos Herodes do mundo. / Até que eu, incapaz de me calar, devasse os versos e destrua a paz, que agora sinto, só de te sonhar”

No Natal de 2020, para evitar grandes aglomerações, a tradicional árvore de Natal do Ibirapuera foi transferida para uma área particular, na marginal Pinheiros. E a “Festa da Família” do ano que nunca existiu foi diferente do habitual. A OMS avisava: “A situação é gravíssima. Nem o Natal nem o Ano Novo poderão ser festejados como se pensava”. Para o Ernesto, a natalícia solidão não seria novidade. De rosto estampado na página de um jornal, ele comentava:

“Estou sozinho em casa. Preparo tudo para a ceia, mas não tenho ninguém”.

Ernesto somava o terceiro Natal passado sozinho. Só na Internet encontrava refúgio, para se abstrair do isolamento.

Nos natais da minha juventude, eu dirigia coros de igreja e cantava na Missa do Galo. Quando, em 2020, li notícias, que davam conta de uma profunda crise moral (a que a escola não era estranha), recordei um Natal de finais da década de sessenta.

Pouco passava da meia-noite, saí da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, cantando a plenos pulmões o cântico final da Missa do Galo:

“Paz na Terra, Paz na Terra e Glória a Deus nos altos céus. Glória ao Filho, Glória à Mãe. A Paz na Terra! A Paz na Terra!”

Noite fria foi aquela! Talvez estivessem uns cinco graus abaixo de zero. E eu descendo a rua, que me levaria a casa, cantando, possuído por um esbraseante espírito natalício. Até que… numa reentrância de loja chique, deparei com um quadro, que me era familiar. Fora o último que vira, ao sair da igreja: a Pietá.

Uma mulher acalentava uma criança. Aturdido, escutando o seu soluçar, me aproximei, sem saber o que fazer. Ao seu lado, um velho jazia, tremendo. debaixo de uma manta esburacada. Ao seu redor, começava a formar-se uma fina camada de geada. Também chorava. Debrucei-me sobre aquele corpo franzino, passei a minha mão pelo seu enrugado rosto. Perguntei o que poderia fazer por ele. Com voz trémula, me disse:

“O que eu quero, meu filho é que a morte não demore a chegar. Vai, meu filho, vai! Deixa-nos. Vai para casa”.

Fui me afastando, possuído por um estranho sentimento. Mais abaixo, numa esquina da Praça da Liberdade, deparei com duas prostitutas seminuas, tão trémulas quanto os moradores de rua. Em vão, esperavam clientes, mas… era Noite de Natal.

Senti vontade de correr, corri, fugi dali, fugindo não sabia de quê. Exausto, quase chegado a casa, sentei-me nos degraus de pedra das Escadas da Vitória. Subitamente, soltou-se um mar de lágrimas feitas de impotência e raiva.

Por: José Pacheco

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