Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLXXIII)

Alcântara, 27 de junho de 2041

Como se depreende da narrativa anterior, a culpa do “atraso” era da jovem, por ser “Made in China”, como acontece com os lápis e as porcelanas 

Aproveitando-se das liberdades conferidas pelos “tempos mortos dos intervalos”, a Marta descobriu que, para além de bem falar inglês, a Li Yan possuía um absoluto domínio de conceitos na área das ciências naturais, e que não era despicienda a sua mestria na expressão plástica.

Nenhumas destas competências pareciam relevantes para a professora. Em abono da verdade, digamos que a professora nem suspeitava da existência destes dons naquela aluna do fundo da sala. O tempo era escasso para “dar o programa à turma”, não sobrava tempo para chinesices. Nem o facto de a Li Yan ser dotada de um profundo conhecimento do património literário universal impressionou os soberanos avaliadores. 

A jovem estagiária nem sonhava quantos “chineses” a rodeavam, naquela sala de aula. Nem ela, nem a professora, a qual, só provindos do bairro, contava cinco ou seis “chineses” na turma. As recomendações de uma pragmática supervisora apaziguavam as dúvidas que, por vezes, assomavam aos jovens espíritos: 

“Enquanto for estagiária, a menina terá de fazer planos para alunos diferentes, quando lhe for pedido. Depois, quando já for professora e tiver a sua turma, segue os alunos normais e faz como vê fazer”. 

Até que chegou a vez de a Marta dar a sua aula. Cumpriu à risca o plano. Como mandam as regras de bem planificar, os primeiros três minutos e quarenta e cinco segundos foram despendidos na “motivação”. Ia já a passar à exposição do tema, quando o seu olhar se cruzou com “o petrificado olhar da Li Yan”. Parecia dizer-lhe “vem sentar-te junto de mim!” 

A Marta confessou-me o desconforto. Sentiu que “aquele olhar implorava, mas nada podia fazer”:

“Senti-me tão mal que, sempre que olhava para ela, desviava o olhar, para não me sentir ainda pior. Aquele olhar incomodava-me. Desisti de olhar para ela”. 

Felizmente, a professora e a supervisora não se aperceberam das hesitações, e a Marta passou com êxito às etapas seguintes do plano de aula para os não-chineses.

O episódio da “aula dada pelo plano” parecia não ter afetado a relação. Se a Marta ganhara consciência de que nada sabia de ensinar, compreendera que o que é melhor para os alunos terá de ser o melhor para os professores. Crescera como pessoa e aprendera que só havendo pessoa nela se poderia plantar um professor. 

Por sua vez, Li Yan ficara algo confusa, mas a sua sensibilidade dizia-lhe que continuariam amigas. Sinal seguro da existência do vínculo afetivo foi o facto de Li Yan ter passado a tratar a estagiária por “Professora Marta”, no que diferia dos colegas da turma, que não abdicavam do tradicional tratamento por “estagiária” imposto por uma professora pouco dada a “faltas de respeito”. 

No dia do aniversário da “professora Marta”, a Li Yan presenteou-a com “um estupendo desenho” (nas palavras de uma Marta visivelmente comovida) acompanhado de quatro pequenas grandes frases: 

“A escola é bonita e grande. O recreio é grande. A Marta é muito boa e muito bonita. Eu muito gosto Marta” 

À única “professora” que lhe prestava atenção a Li Yan conferiu o privilégio do acesso aos segredos de um “Diário”, se bem que (como me confidenciou a Marta) estivesse “escrito em chinês e não se percebia nada”. 

A jovem chinesa estava tenta às dificuldades de leitura da “professora”. Por isso, os dias que se seguiram foram de docência a meias: se a Marta ajudava a Li Yan a alargar o seu conhecimento do português, a Li Yan ensinava à Marta rudimentos de escrita chinesa. 

 

Por: José Pacheco

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