Óbidos, 4 de julho de 2041
Até ao dealbar da década de trinta, manteve-se o estranho fenómeno de distribuir indivíduos em função de características pessoais, de organizar turmas por escalão etário e outros pedagógicos disparates segregadores.
Por essa altura, num outdoor, li a seguinte frase publicitária:
“Neste colégio, os últimos serão sempre os outros”.
Seria preciso bater mais fundo? Nem sequer se corava de vergonha perante enormidades desse jaez?
Há quase um século, Élise Freinet colocava a seguinte questão:
“Como será uma aula onde os alunos não farão, todos ao mesmo tempo, o mesmo? Como regular todo o trabalho escolar?”
Élise tinha consciência da obsolescência da organização do trabalho escolar centrada em aulas dadas para um (inexistente) “aluno médio”, em tempos iguais para todos. Preocupava-se com a imposição de ritmo único a alunos que denotavam diferentes ritmos. Interrogava-se. Mas, nem seria necessário reportarmo-nos à França da primeira metade do século XX. Já em 1898, Augusto Coelho afirmava:
“Em Portugal, a escola é ainda, em geral, formalista, urge transformá-la num centro de vida e movimento”.
Nos idos de vinte, esse naco de prosa ainda poderia ser considerado “ficção científica”.
Há muitos anos, o ministério “descobriu” que a maioria das escolas imputavam o insucesso dos alunos à sua origem sociocultural e à falta de formação dos professores. No estudo a que me reporto, confirmou-se o óbvio. Isto é, que predomina nas nossas escolas o método expositivo, a disposição dos alunos em filas, voltados para o quadro, e que não era visível “a existência de estratégias específicas para potenciar a aprendizagem dos alunos com ritmos mais lentos”. Dito em linguagem dura e pura, quem não acompanhava o ritmo do professor que se desenrascasse e fosse pôr os filhos em “escolas especiais”.
Os adeptos do pensamento único desdenhavam do que o vosso avô escrevia, recorrendo a uma metafísica da legitimação assente no inquestionável princípio que dizia que a culpa era do sistema, ou das “teorias das ciências da educação”. Das ditas “teorias”, que os habituais detratores não sabiam dizer quais fossem, ou onde tinham tradução prática.
Num ponto eles tinham razão: muitas escolas não davam resposta à diferença, porque (coitados!) “os professores não podiam ocupar-se do resto da turma, se o deficiente estivesse a estorvar” (sic). Não passava pelas cabeças dessas pessoas que houvesse outros modos de organizar o trabalho escolar? Não se trataria de encaixar um “deficiente” (eu não utilizo esta denominação, mas era assim que os tratavam) numa turma, para reduzir o número de alunos dessa turma, ou para produzir caricaturas de inclusão.
Para que a inclusão passasse a ser mais do que enfeite de teses, seria preciso interrogar práticas educativas dominantes e hegemónicas. Há mais de um século, havia professores que se interrogavam e tentavam melhorar as escolas. Mas havia, também, dadores de aulas, que recusavam interrogações e impediam mudanças.
Quando seriam postos em prática princípios de escola inclusiva enunciados na Conferência de Salamanca? Quando se deixaria de centrar o problema no aluno, para o centrar numa gestão diversificada do currículo? Quando cessaria a intervenção do especialista, num canto da sala de aula, e se integraria o especialista numa equipa de projeto? Quando se concretizaria a efetiva diversificação das aprendizagens, que tivesse por referência uma política de direitos humanos, garantindo oportunidades educacionais e de realização pessoal a todos? Cadê, enfim, a inclusão?
Por: José Pacheco
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