São José do Imbassaí, 6 de dezembro de 2041
Nos idos de vinte, a educação continuava à deriva e era fértil em dislates. A prova de acesso à universidade era um deles. Não sendo obrigatória, a frequência da universidade era um direito. Mas, um instrumento de darwinismo social negava a muitos jovens o acesso ao “superior”.
A comunicação social era pródiga na divulgação de um triste espetáculo:
“Dois irmãos chegaram ao local do exame, mesmo “em cima da hora”, e só um pode entrar. Outro jovem chegou na moto do pai, com um minuto de atraso: “Pütz! Já era!”
Cerca de 500 estudantes faltaram à prova, em locais próximos à favela: “A prova é muito longe da minha casa. Não tenho culpa de morar no Salgueiro.”
Na televisão, uma “doutora em educação” lamentava:
“No ano passado também acompanhei o meu filho… A universidade é para todos, mas…”
Desde a sua criação, essa prova era cenário de transmissão de valores, que configuravam má educação. E, mesmo considerando os alunos como seres potencialmente desonestos, os vigilantes não anulavam possibilidades de prevaricação. Muitos jovens eram apanhados no uso do celular, durante a prova. E o aparato policial não impedia que aumentassem as tentativas de fraude.
Um professor foi acusado de vazar questões da prova para os alunos, uma semana antes da aplicação do Enem. A denúncia foi feita depois de um estudante publicar fotos de apostilas contendo as questões. Um estudante enviou uma imagem da prova, por um aplicativo de mensagens, horas antes do início do exame. Meses depois, a polícia confirmou o vazamento, mas não conseguiu identificar o autor das imagens.
Pessoas foram presas suspeitas de comandar uma organização que, através de pontos eletrônicos, enviava o gabarito da prova para os candidatos, durante a realização do exame. Cerca de quarenta estudantes já matriculados em universidades teriam conseguido as vagas valendo-se do esquema. A quadrilha chegava a cobrar trinta mil reais pelas respostas.
O INEP, responsável pela aplicação do Enem, eliminou mais de mil e quinhentos candidatos, por tentativa de fraude. Outro caso de grande repercussão aconteceu na gráfica onde as provas eram impressas. Numa das edições da prova, 740 candidatos foram eliminados por uso de equipamentos inadequados. E houve casos em que imagens das provas foram postadas em redes sociais, tiradas dentro do local do exame.
A impressão digital da coleta de dados biométricos evitava que outra pessoa fizesse a prova no lugar do inscrito. Mas, trapaças ocorriam em quantidade muito acima do que se detectava, e uma análise estatística apontava alta chance de ter ocorrido fraude em centenas de provas.
Seria preciso avaliar a avaliação. Acaso houvesse efetiva avaliação nas escolas dos idos de vinte, o vestibular universitário não determinaria as regras do jogo, a montante do sistema. Nesse tempo, a avaliação decretada era formativa, contínua, sistemática. Mas, a avaliação praticada na maioria das escolas estava nos antípodas da lei, nada tinha a ver com o preceituado.
Aplicava-se duas ou três provas por trimestre, somava-se os resultados e dividia-se a soma pelo número de provas, para se atribuir uma classificação. Confundia-se avaliação com classificação, como se a escala intervalar (de variável contínua) fosse semelhante a uma escala ordinal (de variável discreta).
Havia quem dissesse que também considerava o nível de criatividade, autonomia etc. Mas, cadê os testes, ou outros instrumentos de avaliação da criatividade e da autonomia? E a criatividade e a autonomia teriam sido “ensinadas” na sala de aula?
Por: José Pacheco
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