Pego do Seixo, no primeiro de janeiro de 2042
Os últimos dias do distante 2021 e os primeiros de 2022 foram passados em andanças pelo Alentejo profundo. Entre Colos e o Vale de Santiago, convivi com professores éticos, famílias e comunidades. Celebrei a passagem de ano na companhia da Cristina, do Pedro, da Leonor, da Cléo. E a celebração dessa noite trouxe-me à memória um “réveillon familiar” de início de século.
Querido neto, já completaras o teu primeiro ano de vida e eu ainda não conseguira encontrar o fio da meada, para escrever aquele que seria o teu livro. Estavas sentado no colo do teu pai, do outro lado da mesa de jantar. Fiquei a observar-te. discretamente, para não perturbar a visão de tudo o que para ti era novo.
A casa estava repleta de boa gente, aromas, rumores e alvoroços. Com o início da contagem decrescente para a meia-noite, subitamente, a agitação e o ruído deram lugar à quietude e ao silêncio. E tu te assustaste.
Segui a direção do teu olhar. Fixava-se num dos gestos rituais de passagem de ano, protagonizado por um tio que engolia uvas passas com um semblante demasiado concentrado para quem apenas estava ingerindo alimento. Não suspeitavas, mas estavas sendo sujeito a aculturação, ao contemplar um adulto comendo uvas raquíticas e formulando desejos para um ano que começava, e no qual iria repetir os mesmos erros, que desejou não cometer, no último dos dias do ano anterior.
Tudo vias com o brilho dos inícios no teu olhar. Sem que o soubesses, deste-me pretexto para um livrinho, que virou peça de teatro, pelas mãos da minha amiga Janaína. Mais do que um livrinho, se constituiu em releitura de aparentes realidades.
Vinte anos mais tarde, na visita à casa de uma criança grande chamada Darcy, a sua invocação me restituiu o saber ver com o brilho dos inícios no olhar. Amanhã, vos falarei da gesta de uma nova educação, reiniciada nos idos de vinte, sob a égide dessa criança grande, que dizia ter fracassado em tudo o que tentara fazer na vida. Não fracassou! O Ano Novo de vinte e dois trouxe consigo uma Educação Nova.
No primeiro dia desse ano, vi-me regressado aos anos sessenta, ao tempo em que decidi ser professor, e quando comecei a corresponder-me com uma jovem brasileira. Trocamos centenas de cartas em papel fininho de correio aéreo, uma por semana, ao longo de alguns anos. Por insondáveis caminhos, dava os primeiros passos da minha ida para o Brasil.
A Célia enviava-me postais ilustrados com imagens de Araguari, falava-me de tropicalidades culturais, que me levaram a escutar o Quinteto Violado, a Elba e, depois, Miltons, Caetanos, Chicos… Se, com o Rubem, me liguei ao Brasil da educação, com a minha amiga Célia, me aproximei do Sul pela música. Aliás, a minha amiga viria a ser professora do Conservatório de Música de Belo Horizonte.
Chegado ao início da década de setenta, a polícia política espiava os meus passos, violava a minha correspondência. Sentia preocupação pela sorte da Célia, acaso a polícia política da ditadura brasileira soubesse da nossa relação epistolar. Prudentemente, suspendi o envio das cartas.
Em 2005, recebi convite para uma fala em Araguari. E lá fui. Chegando à cidade, consegui o contato da Célia. Liguei para o celular da minha amiga. Atendeu:
“Oi!”
“Maria Célia?”
“José Pacheco?”
Por que vos conto isto, neste primeiro de janeiro de 2042? Porque, nesse dia, retomamos uma conversa de há trinta e cinco anos.
Há quem diga que não é por acaso que há acasos. Em 1970, sem que o soubesse, eu já estava no Brasil. Tratar-se-ia de uma junguiana sincronicidade? Ou haverá uma esotérica explicação das “coincidências”?
Por: José Pacheco
322total visits,6visits today