Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCLXIII)

Lajinha, 13 de janeiro de 2042

Há uns oitenta anos, o vosso avô “ganhava a vida” fazendo “biscates” de eletricista. Na Ilha dos Tigres, não faltavam clientes. Rádio de válvulas avariado, lâmpada que não acendia, curto-circuito imprevisto, tudo servia para ganhar uns cobres. Perante a avaria, manuseava na perfeição um velho busca-pólos, que dinheiro não havia para comprar um amperímetro, e, com o escasso conhecimento, entre choques de baixa tensão, curiosidade e teimosia quanto baste, lá fui acertando e errando… aprendendo. 

Só meia dúzia de anos depois, guardei as chaves de fenda e o alicate, para debutar no mundo da educação. Não havia desafio que não enfrentasse, problema que não resolvesse. Daí que tivesse criado situações tensas, delicadas, na passagem do mundo industrial para a minha iniciação profissional. Para a escola eu levava aquilo que captara no mundo das “ciências exatas”: capacidade de análise, rigor e uma apreciável dose de resistência à frustração.

Imaginai, então, o meu primeiro dia na escola pública onde me “efetivei”.

Esperei mais de meia hora que a primeira reunião do Conselho Escolar começasse. As professoras iam chegando e conversando sobre os últimos capítulos de uma novela, que fazia grande sucesso na rádio. Sendo estrábico, sem que elas percebessem, ia observando os olhares que me deitavam. De um modo como só professoras eram capazes, entre elas cochichavam sobre a presença do único homem naquela reunião.

Eu era um jovem e as minhas colegas já eram “entradas na idade”. No mínimo, tinham o dobro dos meus anos. E a reunião teve início sem que tivessem dirigido a palavra a um “novato”, que as privava de “conversar sobre coisas de mulheres”.

Na primeira reunião do ano letivo, eram feitas as turmas. Sem apresentações, nem saudações, a professora mais idosa (pelo menos, na aparência) chamou uma funcionária da escola, mandou-a sentar-se ao seu lado e foi perguntando:

“Ó Eufêmia, de quem é filho este miúdo?”

“É filho do Senhor Engenheiro.” (Coloquei maiúsculas, para tentar representar a ênfase posta pela Eufemia na referência àquele pai, certamente, pessoa importante).

A professora escreveu o nome da criança no seu Diário de Frequência. E o diálogo prosseguiu:

“E este, aqui?”

“Esse vem lá do bairro da Sobreira”.

“Então vai para a turma do nosso novo colega. Sou a docente mais antiga e tenho prioridade na escolha.”

Quando já tinha ficado com uns e me mandando ficar com outros, eu perguntei qual seria o critério da distribuição dos alunos pelas nossas duas turmas:

“Colega, por que não segue a ordem da matrícula?” – perguntei – “Por que não coloca na sua turma os primeiros da lista e me entrega os restantes?”

“Eu digo-lhe para ficar com esses alunos, porque vêm lá da Sobreira, do bairro dos ciganos e dos bandidos. Eu não sei trabalhar com essa gente!”

“A senhora não sabe ensinar gente pobre?”

“Não! Não sei, caro colega.”

“Então, vá aprender.”

A minha formação de eletricista me traiu. Se eu não “soubesse” medir a impedância de um circuito de corrente alterna e o dissesse ao “encarregado do pessoal”, ele logo retrocaria:

“Se não sabes, aprende!”

Não restava alternativa: ou aprendia, ou aprendia. E, acaso me recusasse aprender, despedido seria.

Resta acrescentar que a idosa senhora era a esposa do Senhor Diretor. E o Diretor era informador da Polícia Política da Ditadura. Imaginai o que me aconteceu, só porque entrei naquela escola com o pé “esquerdo”.

Foi esse o primeiro sinal de alerta recebido de uma instituição, cujos antiéticos servidores se sentiam no direito de não aprender e de, impunemente, excluir. 

 

Por: José Pacheco

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