Vilar Formoso, 26 de março de 2042
No mês de março de há vinte anos, a abjeta guerra nos atravessava em comunicação síncrona. Obscenas imagens açoitavam olhos vazios, impotentes. E eu, educador, me descobria indireto causador dessa e de outras tragédias.
Ao longo de meio século, eu acumulara muitos insucessos, embora contribuísse para ajudar a sustentar resilientes projetos. Pesava-me a consciência de ter alimentado a esperança de educadores que, vendo destruídos os seus sonhos, acabaram no divã do psiquiatra, ou migraram para profissões de menor risco.
Chamavam-me utópico só porque nunca desisti de acreditar que, algum dia, a idade da educação chegaria. E começava a chegar nesse mesmo mês. No Portugal profundo, a saudável “invasão” de uma nova geração de jovens entre os vinte e os quarenta dava novo alento a um septuagenário.
Fui ao seu encontro. E, em insuspeitas paragens, conheci gente de uma nova humanidade. Nas redes sociais, a Alice comentava um desses encontros de partilha de uma benigna “loucura”:
“Ontem, tivemos oportunidade de sonhar alto, sonhar com uma escola diferente, feita pela comunidade, para a comunidade. As escolas são pessoas. Fazer diferente é possível, é realista e é urgente, é ser cidadão.
Sonho com um interior de Portugal cheio de força, de autonomia e com um mar de escolas centradas no aluno e na comunidade. Figueira de Castelo Rodrigo já começou esse caminho e assim vai continuar ganhando pessoas a cada passo. Agrupamento de Escolas de Figueira de Castelo Rodrigo, Plataforma de Ciência Aberta, muitos parabéns por tudo o que têm feito!”
Seres admiráveis como a Alice davam-me novo alento, me diziam ser preciso não desistir. Possuíam plena consciência da necessidade de inventar uma nova educação para os seus filhos e para os filhos dos filhos dos seus filhos:
“Estou mesmo a terminar de ler um dos livros mais importantes que alguma vez li, sobre a importância da relação entre pais e filhos, e como ela é essencial para o desenvolvimento pleno de um ser humano.
A nossa sociedade está verdadeiramente doente, em tantos aspetos, mas este de não darmos às crianças a aldeia de que elas precisam para crescer é grave e está a transformar as nossas famílias e comunidades para pior”.
As palavras da Alice despertaram memórias de velhos escritos. Como uma cartinha enviada a outra Alice:
“Querida Alice, recordar-te-ás de que uma escola que acolheu no seu seio duas gaivotas e pássaros aprendizes, que partiram da escola das aves levando na bagagem gestos e saberes adquiridos nas origens, mas também o desprendimento e a confiança necessários à construção de novos ninhos.
Faltaria apenas entender os sinais e os perfumes de outros pássaros, sentir o pulsar de outros lugares, outras verdades. Pois, como disse o Pássaro Encantado (de que te falei numa outra carta), a verdade não é uma só, nem é só nossa, vivendo, sob múltiplas formas, em todas as pessoas e em todos os pássaros.
Os primeiros tempos foram de prudente expectativa, mas também de disponibilidade. Em tudo o que se relacionasse com as aprendizagens que os jovens pássaros devessem fazer, seria de fazer também a pergunta fundadora: seriam os pássaros ensinantes (quer os recém-chegados, quer os residentes) capazes de assumir a construção em comum de um locus de aprendizagens que fizesse dos aprendizes pássaros sábios e felizes?
As gaivotas sabiam que tais aprendizagens não seriam viáveis em processos de transmissão como o dos vasos comunicantes, mas que se colariam às asas, se o voo ensinado e aprendido fosse colado à vida de outros diferentes pássaros”.
Por: José Pacheco
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