Guimarães, 7 de abril de 2042
Foram anos e anos de andarilhagem, anos a fio a cuidar de outros, sem tempo para cuidar do próprio. É verdade, netos queridos. E, quando me dei conta de que o corpo vacilava, quando precisava de mim cuidar, deparava com uma lista de compromissos sem fim, para cumprir. Muitos educadores, muitas escolas e autarquias despertavam de uma longa letargia.
Num dia de abril de há vinte anos, fui até Guimarães, ao encontro dos amigos do “Tempo Livre”. Como em outros lugares, essa foi mais uma oportunidade de conhecer gente boa: o Rodrigo, o Miguel, o Luís, o José… sobravam os bons educadores, escasseavam as iniciativas de boa educação.
Com esses educadores e com alunos da Secundária de Caldas das Taipas, dialoguei. No mesmo dia, o velho Zoom, permitiu-me dialogar com outros educadores e permitiu ao amigo Antônio esclarecer algumas dúvidas sobre leis e regulamentações. Tratava-se de identificar artigos das leis que as escolas não cumpriam e outros que permitiam inovar… para cumprir a lei.
Decorridos 36 anos sobre a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, seria oportuno fazer um “balanço” do cumprimento da lei, começando pelo artigo 48.º (45º no original), que rezava assim:
“O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orienta-se por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes”.
A primeira pergunta surgiu clara e natural:
Cadê a “integração comunitária”, se os professores, sobretudo em início de carreira, eram “colocados” longe da sua… comunidade?
As condições impostas pelo sistema de concursos e colocações impedia que se estabelecesse um vínculo afetivo e efetivo com as comunidades de pertencimento. As escolas onde eram colocados não passavam de “apeadeiros”, lugares de passagem de professores, que ansiavam ficar “colocados” perto de casa.
Me condoía com a sorte daqueles que passavam por mudanças de domicílio e de vida, em condições, por vezes, desumanas. Coloquei esse sentimento numas cartinhas, que enviei à Alice:
“Nos anos que se seguiram ao teu nascimento, à semelhança de outros professores em início de carreira, os teus pais não tinham poiso certo. Ano após ano, viviam a incerteza da “colocação”, o final feliz de uma angustiada espera.
A “colocação” dava aos vossos pais a certeza de amealhar sustento, assegurar futuro. Eles se conheceram, se amaram e quiseram que viesseis ao mundo num tempo incerto. Não esperaram por tempos seguros, que, nestas coisas do amor como nas de aprender e ensinar, o que é urgente não deve esperar. E aceitaram a sina de levar a casa às costas para onde o acaso do “concurso” os atirava.
“Concurso” era um estranho jogo de acasos, que os professores eram obrigados a jogar, naquele tempo. O “concurso” era impiedoso e, no final de cada ano letivo, impunha a violência da separação àqueles que se começavam a conhecer. O “concurso” era cego, pouco se importava com os afetos e nada entendia de criar laços. Impedidos de concretizar o sonho de fazerem as crianças mais felizes, afastados daqueles que aprenderam a amar, os teus pais mudavam de casa e dentro da casa, levavam o teu berço para longe das paragens habitadas pelos teus avós”.
Perante o não-cumprimento da lei, ousei lançar um repto: por que razão os professores eram obrigados a percorrer enormes distâncias, quando, no mesmo bairro, na mesma rua, no mesmo prédio, havia alunos que poderiam aprender com eles?
E uma singela pergunta: o que teria isto a ver com a criação de “círculos de vizinhança”?
Por: José Pacheco
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