Gare do Oriente, 14 de maio de 2042
Queridos netos, vinte anos atrás, em plena pandemia, armado de testes rápidos e PCR, o vosso avô atravessava o Atlântico, ao encontro de educadores utópicos. O vosso pai era um deles. E calhou de passar uma obrigatória “quarentena” na vossa casa.
No décimo quinto dia, cansado de estar fechado, deitei pés ao caminho, percorri ruas e praças da Tavira islâmica. Até que, exausto de quase duas horas de intenso caminhar, me sentei num banco de jardim. Subitamente, me dei conta de que a última vez que me sentara naquele local fora há… cinquenta anos.
O que fizera de tanto tempo de vida?
Esse tempo fora entregue à aprendizagem de utopias, à denúncia da Escola da Modernidade, ao anúncio de novas construções sociais de aprendizagem. Diria o Ademar que a maior crítica que se poderia fazer à escola não era a de que ela ignorava as utopias, mas antes parecia acreditar na mais perversa e desumana das utopias – a utopia de uma sociedade curricularizada, programada, na qual todos deveriam pensar o mesmo, sentir o mesmo, saber o mesmo, dizer o mesmo, sonhar o mesmo.
Nos últimos anos do século XX, o Ademar escrevia;
“Na madrugada do naufrágio do Titanic, o quinteto liderado por Wallace Hartley só parou de tocar trinta minutos antes de o luxuoso navio se afundar. Os músicos sabiam que da sua atuação dependia, em larga medida, o controlo do pânico dos passageiros. Um dos sobreviventes do naufrágio contou mais tarde aos jornais que ao mesmo tempo que as águas tumultuosas do oceano se insinuavam discretamente sobre os mais recônditos escaninhos do Titanic, preparando o golpe fatal, a orquestra ia tocando “músicas muito agradáveis” para distrair os condenados à morte, as cerca de mil e quinhentas pessoas (incluindo os tripulantes) que não teriam lugar nos botes salva-vidas e pereceriam daí a pouco afogadas.
Meia hora depois, os cinco músicos estavam mortos no fundo do oceano, talvez abraçados aos seus maravilhosos instrumentos”.
Depois, deste modo, o Ademar refere-se a alguém, que vós bem conheceis:
“(…) é, em Portugal, um desses resistentes, seguramente, um dos mais lúcidos, teimosos e acutilantes. Diferentemente de outros passageiros que não quiseram, não souberam ou não puderam evadir-se a tempo do Titanic, arriscou a ruptura, deu o salto e sobreviveu, levando consigo e salvando do naufrágio não apenas os outros músicos e o resto da tripulação, mas as crianças, todas as crianças que lhe foram estendendo a mão.
Com todos eles, ao largo do Titanic, fundou uma ilha em forma de escola – onde instituiu um único e arrojado princípio curricular: todas as crianças, solidariamente, têm direito à sua escola pequenina. E com as escolas pequeninas de todas as crianças cerziu, também solidariamente, uma escola grande, que passará aos anais da história da pedagogia como a Escola da Ponte.
A ilha não se fechou, porém, sobre si própria. Rapidamente começou a emitir sinais, que outras ilhas, outros barcos e outros náufragos captavam. E a ilha da Ponte, paulatinamente, foi-se convertendo, sem o desejar, numa espécie de farol, cuja luz intensa iluminava o trajecto indeciso de um número cada vez maior de navegadores solitários à procura de novos mundos”.
(…) combate denodadamente o mito dos homens providenciais e insubstituíveis e que nunca perde a ocasião de enfatizar que um projecto de escola é e será sempre um acto coletivo e um compromisso solidário para a vida, é apenas (ele perdoar-me-á o qualificativo sempre redutor) o mais experimentado (e o mais metafórico) dos cronistas da extraordinária aventura da Ponte”.
Por: José Pacheco
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